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janeiro 01, 2010

O Esquizofrênico do Copacabana, por Rafael Bán Jacobsen

O Copacabana, cantina italiana prestes a completar 70 anos de história, é um dos mais tradicionais restaurantes de Porto Alegre. Consagrou-se, ao longo dos anos, como reduto da boemia e da intelectualidade porto-alegrense. Um de seus ilustres freqüentadores foi Lupicínio Rodrigues, o mais famoso compositor gaúcho de todos os tempos e um dos mais originais da MPB, por conta de contundentes baladas de dor-de-cotovelo. Uma de suas grandes paixões era o Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, e, reza a lenda, foi ali, no Copacabana, em uma tarde de 1959, quando os bondes estavam em greve e haveria uma partida de futebol no Estádio Olímpico, que Lupicínio então escreveu o início do hino do seu time do coração: “Até a pé nós iremos / para o que der e vier / mas o certo é que nós estaremos / com o Grêmio onde o Grêmio estiver…”. Um dos mais apreciados pratos do Copacabana é a vitela assada com cebola e batatas rústicas.

Eu não sou boêmio, nem intelectual, não componho música de dor-de-cotovelo e nem como carne, mas gosto muito de ir ao Copacabana. Noite dessas, lá estava eu, saboreando meu antepasto de berinjela, meu macarrão di grano duro com molho pesto, tudo acompanhado por um encorpado e veganíssimo vinho tinto, e pensava em como, a rigor, ser vegano é uma questão de mínima boa vontade: muitas vezes, é possível encontrar deliciosas opções de alimentação mesmo nos lugares aparentemente mais inamistosos. Lá estava eu, saboreando minha refeição livre de crueldade quando, de repente, eu o vi, em uma mesa próxima, com seu indefectível chapéu panamá, debruçado sobre uma tábua de vitela, besuntado de gordura lustrosa: sim, era ele, o vereador amigo dos animais.

O vereador é bastante conhecido por lutar em várias frentes, muitas relacionadas à causa animal. Por diversas vezes, já se posicionou contra a utilização de cavalos como animais de tração, contra o extermínio nos centros de controle de zoonoses, a favor das campanhas de adoção de cães e gatos e da conscientização das crianças sobre esses e outros aspectos. Em entrevista a uma ONG de proteção animal, em 2004, declarou: “Não tem como acender uma vela para cada santo. Tem que ter lado. Eu tenho: defendo os bichos!”. E ainda: “A questão é geral. Temos que cuidar de todos os bichos.” Por coincidência, uma semana antes desse encontro, eu havia trocado alguns e-mails com o vereador amigo dos animais sobre um provável apoio à campanha “Segunda Sem Carne”, iniciativa da Sociedade Vegetariana Brasileira, em parceria com a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo, e com o apoio do Slow Food São Paulo, do Instituto Nina Rosa, da Revista dos Vegetarianos, do Greenpeace, entre outros. A campanha visa a estimular a população a abolir a carne do cardápio pelo menos por um dia na semana, o que, certamente, teria um impacto positivo na saúde da população e no meio ambiente (embora, é verdade, em nada – ou muito pouco – ajude os incontáveis animais criados e mortos para consumo). O vereador mostrou-se simpático à idéia, embora tenha se confessado “um fraco” por comer carne. Ressaltou ainda que, por essa razão, não tinha “muita moral” para defender a iniciativa.

Mesmo sabendo tudo isso, não pude deixar de me chocar ao vê-lo deglutindo o bezerro anêmico. Por que o fazia se, naquele mesmo estabelecimento, havia boas opções vegetarianas? Por que o fazia se, na mesa ao lado, estava uma outra pessoa que, mesmo sem ter imensa força de vontade, desfrutava de uma refeição livre de sofrimento animal? Seja como for, a atitude do vereador está longe de ser caso isolado: trata-se, apenas, de mais um exemplo da tal “esquizofrenia moral” descrita por Gary Francione.

Francione, nascido nos Estados Unidos em 1954, é um professor de Direito conhecido por seu trabalho sobre a teoria dos direitos animais e foi o primeiro acadêmico a lecionar esse tema em uma faculdade de Direito nos Estados Unidos. Francione defende o direito dos animais a partir do princípio da igual consideração. Como parte dessa discussão, Francione identifica aquilo que ele chama de nossa “esquizofrenia moral”, quando se trata de animais não-humanos. Por um lado, dizemos que levamos os interesses dos animais a sério. Francione aponta para o fato de que muitos de nós vivemos com companheiros não-humanos, os quais consideramos membros de nossas famílias e de cuja personalidade — sua condição de pessoas ou de seres com valor moral intrínseco — nunca duvidamos. Por outro lado, devido ao fato de os animais serem tidos como propriedade, eles permanecem sendo coisas que não têm outro valor fora aquele que escolhemos lhes dar, e cujos interesses protegemos apenas quando fazer isso nos traz um benefício — geralmente econômico. Ou seja: no tratamento com os outros animais, a postura humana tende a ser incoerente. Como melhor explica o ativista pró-animal Nuno Franco, em texto publicado no site da União para Proteção dos Animais (UPPA):

“A chacina de focas que todos os anos ocorre no Canadá ou as críticas ao uso de peles e à sua indústria representam alguns exemplos desta conduta incoerente. É deveras curioso que a maioria das pessoas que se pronuncia sobre os maus tratos a cães e gatos, sobre a morte das focas ou sobre o uso de peles, se remeta ao silêncio quanto ao tratamento das galinhas e porcos, sobre o abate de vitelas ou leitões. O que torna umas práticas condenáveis e outras aceitáveis e o que coloca alguns animais na nossa esfera de preocupação e consideração moral enquanto remetemos outros à indiferença é algo contraditório e difícil de compreender, e é exatamente isso que Gary Francione define como esquizofrenia moral.”

Sempre me intrigou o fato de haver pessoas cheias de empatia com os animais, pessoas que, inclusive, “tentam” ser vegetarianas, mas que, de quando em quando, reclamam que foram “forçadas” ou “obrigadas” pelas circunstâncias a comerem carne. Nunca entendi bem o que querem dizer com essas palavras tão fortes: “forçadas”, “obrigadas”. Na grande maioria dos casos, imagino, as pessoas não querem dizer que alguém as tenha ameaçado com uma pistola na cabeça (“Ou você come essa chuleta, ou morre!”), mas, isto sim, aludem ao fato de que, se não comessem carne em dado momento, teriam de pular aquela refeição. Não conheço ninguém que tenha morrido por pular uma refeição, mesmo estando com fome. De qualquer modo, nessas horas, se o estômago reclamar, é bom pensar no que é mais terrível: o ronco da barriga ou o grito dos animais assassinados para virarem arremedo de comida. Outras vezes, as pessoas se veem “forçadas” a comerem pedaços de bichos destroçados simplesmente porque não sabem dizer “não”. É fato: em uma sociedade hipócrita, em que todos são obrigados a sorrir o tempo todo e dizer sempre “sim”, recusar algo pode soar bastante antipático. Todavia, devemos lembrar que a capacidade de dizer “não” e de aceitar o “não” alheio é critério básico de civilidade, é pilar de convivência em todo grupo que preze as características de cada indivíduo, que aceite idiossincrasias e não flerte com a pasteurização e formatação de um pensamento coletivo. Dizer “não” e recusar é uma arte que leva uma vida inteira para ser aprendida e aperfeiçoada. Uma arte que precisa ser cultivada o tempo todo, pois nunca desaparece o risco de que possamos cair em tentação, fraquejar diante do canto da sereia e dizer sim, quando, na verdade, desejaríamos dizer não. Quando as pessoas adotam a política do “deixa pra lá” e se mantêm passivas diante das situações que as incomodam, o resultado pode ser desastroso. Nesse caso concreto, o de recusar ou não o cadáver de um animal, se o resultado não for diretamente desastroso para a pessoa, com certeza o será para os animais.

Quando há opção, não há ingenuidade. Quando não estamos com a pistola apontada para a cabeça, temos a capacidade de fazer escolhas. Nesse caso, ninguém é obrigado ou forçado a nada. Como alerta a filósofa Sônia Felipe em seu texto “Ética na alimentação: o fim da inocência”:

“O ato de comer perde a aura de inocência no momento em que os humanos têm à sua disposição as mais diversificadas fontes naturais de nutrientes vegetais, mas insistem em encher seu prato de pedaços de carcaças que constituíram organismos de indivíduos animais que viveram uma experiência particular de vida. Não há inocência alguma no ato de comer, quando o buffet do qual nos servimos oferece aos comedores uma variedade de preparados nos quais os produtos derivados do abate intensivo de animais e os subprodutos dos restos desse abate são apresentados lado a lado com produtos não derivados de animais. A inocência acaba quando, mesmo tendo diante de si alimentos nutrientes de origem vegetal, o comedor ‘escolhe’ pôr em seu prato porções derivadas de animais.”

Para defender coerentemente a causa animal, precisamos policiar nossos próprios hábitos com um mínimo de boa vontade e nos vacinarmos contra a esquizofrenia moral. E, para esse mal, a vacina é ressuscitar a necessária e esquecida arte de dizer não.



Rafael Bán Jacobsen é físico, professor, escritor, poeta e músico, além de atuante defensor dos direitos animais.

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