
De certa forma, isso já começa a acontecer, como demonstra o caso do habeas corpus do chimpanzé. Seus advogados inferiram que, sem companhia e encarcerado, o chimpanzé é infeliz e consegue comunicar que, sim, gostaria de ser transferido para uma moradia condigna. Considerando a maravilhosa diversidade do ser humano, acho que, a partir desse precedente, viremos a testemunhar ações movidas não somente por cachorros, gatos, peixes de aquário e outros animais domésticos, mas também, antecipo eu, por bois de corte ou por frangos para abate. Não descarto até mesmo a possibilidade de medidas contra o que certamente se chamará "zoofobia", em cuja ilícita prática serão enquadrados, por exemplo, os que usarem as palavras "galinha", "vaca" ou "cadela" com intenção pejorativa.
A situação deverá evoluir, em futuro talvez não muito distante, para o estabelecimento dos níveis de consciência das espécies e a consequente maior ou menor abrangência de seus direitos. Não é descabido imaginar a promulgação de uma Declaração Universal dos Direitos dos Cães, ou do Estatuto do Gato e assim por diante, cada um deles definindo os critérios aplicáveis a cada espécie. É complicado, porque, por exemplo, o direito de latir, certamente parte indissolúvel da liberdade de expressão canina, pode conflitar com o direito ao silêncio de um vizinho humano, o que requererá imaginação e engenho da parte de legisladores e magistrados.
Questões éticas e morais, filosóficas mesmo, terão que ser encaradas, por mais incômodas que sejam. O morcego, em muitos casos inofensivo, amante das frutas e polinizador de pomares, pode ser discriminado apenas por ter, na opinião da maior parte das pessoas, uma aparência assustadora ou repulsiva? Nos desenhos animados e historietas infantis, serão adotadas cotas para a inclusão de animais normalmente marginalizados, a exemplo de lacraias, lesmas e piolhos? Aliás, é um direito do piolho infestar cabeleiras improdutivas e sugar uma cesta básica de sangue? Estará sujeito à acusação de omissão de socorro aquele que negar a uma futura mamãe mosquito da dengue o direito a uma picadinha que a ajudará a perpetuar sua espécie?
De propósito, deixei para o fim o direito mais básico, o direito à vida. Sem ele, evidentemente, os outros perdem o sentido. Pensando nele, argumentam os que se negam a consumir qualquer produto de origem animal. Nossa comida deveria ser apenas a que se consegue obter sem destruir nenhuma vida, nem mesmo, talvez, a das plantas. Nós somos os reis da Criação e não podemos agir como predadores.
Nós somos, isso sim, os reis da presunção. Imaginamos que a nossa moral é a moral da natureza, como se a natureza tivesse moral. Na natureza, continua um alegre come-come por tudo quanto é canto, um comendo o outro afanadamente, às vezes até de forma surpreendente, como no caso de um pelicano londrino que vi na internet. Esse pelicano, em seu andar balançado na grama de um parque, viu e fingiu nem notar um pombo a seu lado. Mas, num movimento rapidíssimo, engoliu o pombo, que ficou se agitando dentro daquele papo enorme, sem chance de escapar. Se as pessoas presentes à cena fossem do tamanho de pombos, o pelicano sem dúvida as comeria também, porque é assim a natureza. Nós achamos que somos os grandes comedores, só porque, do nosso ponto de vista, ocupamos o topo da cadeia alimentar. Ocupamos nada. Cada um de nós, mesmo os que não portam parasitas, é hospedeiro de uma infinidade de "ecossistemas", para não falar nos muitos animais que, por exemplo, vivem do sangue de mamíferos, inclusive nosso. Nós somos os favoritos de nós mesmos, não da natureza. Nossos corpos, biodegradáveis como são, para outras espécies não passam de simples comida e, homens, bichos ou plantas, a Terra acabará digerindo todos nós.
Foto: Kimimasa Mayama/Reuters
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