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junho 01, 2010

Espírito de porco



Mês passado, depois de almoçar um lombo de porco delicioso preparado por d. Josina, minha secretária do lar, deitei-me feito um poltrão saciado e liguei a TV. Em um canal a cabo, passava um documentário sobre… porcos, e me surpreendi ao ponto da indigestão com as mais recentes descobertas acerca deste mamífero. Com efeito, pesquisas etológicas apontam que o porco não só é muito mais inteligente que o cão doméstico: também é capaz de reconhecer a própria imagem no espelho, não a confundindo com outro suíno. Significa dizer que o leitão de pocilga, assim como o ser humano e meia dúzia de outras espécies (pongídeos, golfinhos e elefantes), possui autopercepção, consciência de si e, portanto, uma "personalidade". Esse documentário me fez lembrar da balela, dita por René Descartes, segundo a qual todos os animais, exceto o homem, são "autômatos sem alma" e, por isso, incapazes de experimentar dor (embora aparentem senti-la).

O Filósofo, em sua obra "Discurso do Método", também afirmou que nós, humanos, devido à nossa "idiossincrática" faculdade de pensar, temos o direito de "nos tornar senhores e possuidores da natureza", inclusive de todos os animais. Ora, a incapacidade da ciência de prever, em tempo para salvar a vida de centenas de milhares ou milhões de indivíduos, certos acidentes naturais (terremotos, erupções vulcânicas, furacões, tornados, tsunamis, o choque de um cometa ou asteroide…), indica que, muito provavelmente, jamais seremos senhores sequer da fina camada do planeta em que vivemos. Aliás, a mudança climática radical que ora desponta não só diminui essa chance como aumenta a probabilidade de virmos a nos extinguir lenta e dolorosamente - de terminarmos nosso tempo da mesma forma como o começamos: uma pandemia de guerras entre tribos de selvagens. (Grande probabilidade, entretanto, não é certeza: ainda há tempo e condições de mudarmos o rumo dos acontecimentos). Quanto ao efeito desse antropocentrismo cartesiano na nossa relação com os outros bichos, podemos vê-lo cruamente na pecuária industrial. Se, nas fábricas da morte nazistas, a matéria-prima (judeus, eslavos, comunistas, ciganos…) era, para o conforto moral dos verdugos, concebida como sub-humana, nas fazendas industriais modernas a rês de qualquer gado é "desalmada" quando reduzida ao estatuto biotecnológico e puramente físico de "sistema de conversão de proteína vegetal em proteína animal". Assim, fica mais fácil tratá-la, do nascimento ao abate, do modo mais eficiente e lucrativo possível, o que, em regra, vai de encontro ao seu modo de vida natural e gera grande sofrimento. Nas granjas, para que pintos se transformem em frangos em 45 dias (ainda um bebê, dado que a expectativa de vida de um galináceo é de sete anos), são eles forçados a comer o tempo todo, à custa do sono. Para tanto, vivem sua existência curta e miserável sob barulho e luminosidade constante. Pior condição é a do bezerro destinado à vitela: sabe por que sua carne é tenra e rosada? Porque, desde o nascimento, é impedido de se movimentar (i.e., de desenvolver músculos), submetido a uma dieta pobre em ferro e a viver a maior parte do tempo na escuridão.

Não é minha intenção defender o vegetarianismo, nem que só se consuma bichos criados soltos, como a galinha caipira (que tem peito de tísico e mal alimenta uma pessoa). Pretendo apenas lembrar que uma das nossas tarefas de ser moral é minimizar a dor do mundo, e que nossa própria existência depende de uma mudança radical de atitude: substituir o humanismo antropocêntrico por outro, aquele assim definido por Claude Lévi-Strauss: "Um humanismo adequadamente ordenado não pode começar espontaneamente, mas deve colocar o mundo antes da vida, a vida antes do homem e o respeito pelos outros antes do egoísmo".


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