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janeiro 03, 2010

Ano novo, velhos números

por Rafael Bán Jacobsen

Sendo um físico teórico, um dos meus instrumentos de trabalho mais preciosos é a matemática. Por isso, com o tempo, apaixonei-me pelos números e, cada vez mais, enxergo neles uma beleza ímpar. Há ocasiões em que quase chego a duvidar de que sou um físico legítimo, pois a matemática envolvida nos problemas de pesquisa às vezes me fascina muito mais do que as questões físicas em si. Ao acompanharem meus trabalhos, alguns colegas, em tom de galhofa, dizem: “Olha, só posso parabenizá-lo por ter entrado para o time dos matemáticos puros.” Outros, mais austeros, aconselham: “Acho que você deveria perder menos tempo com a matemática e mais tempo com a física.” Mas eu sou teimoso e ainda acho que uma equação fala mais do que três bilhões e meio de palavras. A beleza dos números me seduz.

Todavia, sou um caso quase isolado: a maioria das pessoas detesta lidar com números, torce o nariz para fórmulas, sofre engulhos só de ver um gráfico. Mas sigo convicto da verdadeira maravilha que os números representam. Não é fantástico perceber, embora não se saiba a razão, que qualquer número par pode ser escrito como a soma de dois números primos? Não é simplesmente de cair o queixo que uma mesma proporção esteja presente em fenômenos tão distintos quanto a multiplicação de indivíduos nas sucessivas gerações de um casal de coelhos e também em diversas medidas do corpo humano (a altura total e a medida do umbigo até o chão; a altura do crânio e a medida da mandíbula até o alto da cabeça; a medida da cintura até a cabeça e o tamanho do tórax; etc.)? Ou, mais fundamentalmente, não é desconcertante o fato de que um mesmo conjunto de símbolos, uma mesma construção lógica, que é a matemática, sirva bem a propósitos tão prosaicos quanto contar conchinhas na beira da praia mas também nos permita calcular há quantos bilhões de anos nosso universo existe?

Sim, os números estão repletos de beleza, mas também podem ser extremamente cruéis. Há contextos em que a beleza dos números se esvazia por completo; então, a matemática já não é capaz de provocar qualquer sensação de enlevo. Ao contrário, nesses casos, a matemática torna-se capaz de trazer à tona tudo que há de pior em nós, seres humanos: a desesperança, a revolta, o ódio. Os números que descrevem o holocausto animal constituem um desses casos.

Em 2003, com base nas estatísticas da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) sobre agricultura, o Secretariado da União Vegetariana Europeia, apresentou o número de animais mortos no mundo para consumo humano durante aquele ano. Os números foram estabelecidos a partir de relatórios provenientes de mais de 210 países, mas devemos levar em conta que alguns países e territórios não fornecem dados. Os números foram os seguintes:

- Galinhas e frangos: 45 bilhões e 900 milhões

- Patos: 2 bilhões e 260 milhões

- Porcos: 1 bilhão e 240 milhões

- Coelhos: 857 milhões

- Perus: 691 milhões

- Gansos: 533 milhões

- Carneiros, ovelhas, cordeiros: 515 milhões

- Cabras: 345 milhões

- Bois, vacas, vitelos: 292 milhões

- Roedores: 65 milhões

- Pombos e outras aves: 63 milhões

- Búfalos: 23 milhões

- Cavalos: 4 milhões

- Asnos, mulas, machos: 3 milhões

- Camelos e outros camelídeos: 2 milhões

A matéria do Centro Vegetariano* sobre o tema alerta ainda que a soma de todos esses números fornece um total de mais de 50 bilhões de animais, sem ter em conta os animais aquáticos (peixes e crustáceos). Os números referem-se apenas aos animais abatidos nos matadouros. Excluem-se os animais de criação extensiva (geralmente para consumo doméstico), assim como os que são alvo da caça, difíceis de contabilizar por não haver qualquer tipo de controle. Certamente não estão incluídos nos números os desafortunados animais assassinados em rituais religiosos e tampouco os cães e gatos exterminados em sua globalizada Auschwitz particular, os famosos centros de controle de zoonoses. De tudo isso, só podemos depreender que a realidade é muito pior.

Diante desses números, toda beleza se esvai, escorre feito o sangue dos inocentes animais mortos em nome de nossos vícios e de nossa ganância, restando, então, a carcaça exangue do puro horror. São dados antigos, mas basta olhar ao redor para perceber que as coisas não podem ter melhorado (e, nesse caso, mesmo que os números caíssem pela metade, a chacina ainda teria dimensões dantescas).

Em um trabalho publicado em 2001, Luiz Antonio Pinazza, redator de pecuária e política agrícola da Revista Agroanalysis**, da Fundação Getúlio Vargas, joga um balde de água fria no otimismo vegetariano:

A formulação das tendências de consumo é investigada pelo The International Food Policy Research Institute (IFPRI), seguindo um modelo alimentar mundial em que se incluem dados originários de 37 países e grupos de países e 18 produtos. Conhecido como Impact (International Model for Policy Analysis of Agricultural Consumption), o cenário do início dos anos 90 até 2020 prevê um aumento do consumo da carne e do leite de respectivamente 1,8 e 3,3% nos países em vias de desenvolvimento e de 0,6 e 0,2% nos países desenvolvidos. Ou seja, até 2020, em toneladas métricas, os países em vias de desenvolvimento consumirão mais 100 milhões de toneladas de carne e mais 223 milhões de leite.

Resumo da ópera: o número de animais mortos só vem crescendo e vai crescer ainda mais. Se, em 2003, as estatísticas mais modestas apontavam 50 bilhões de vítimas, hoje, no final de 2009, estamos, certamente, encerrando um ano em que tal número foi superado e vamos receber, de braços abertos, um novo ano em que, mais uma vez, o recorde será batido. Ano novo, vida nova? Infelizmente, penso que não: ano novo, velhos números; ano novo, idênticas atrocidades. Um interessante testemunho do século XIX pode ajudar a ilustrar a constância do banho de sangue em que vivemos imersos.

O romancista russo Leon Tolstói (1828-1910), por sua vez, levou a cabo a experiência à qual a maior parte de nós se recusa, aquela mesma experiência considerada pelo filósofo escocês John Oswald (1760-1793) como um alerta à sensibilidade natural do homem: Tolstói visitou um matadouro. O escritor, bem como qualquer vegetariano de qualquer outra época, estava acostumado a viver em uma sociedade erigida sobre a exploração animal. Já ouvira todas as razões antigas e conhecidas pelas quais, supostamente, matar animais para comer é aceitável e até natural, coisas como “Deus permite”, ou “todo mundo faz assim”. A respeito disso, escreveu ele:

Não existe mau cheiro, som, monstruosidade aos quais o homem não consiga se acostumar a ponto de deixar de ver, escutar e cheirar a aparência, o som e o odor do mal.

Tal convicção reforçou-se ainda mais com sua visita ao matadouro, descrita por ele nas seguintes palavras:

(…) na longa sala, já impregnada com o cheiro de sangue, só havia dois açougueiros. Um soprava a perna de um carneiro morto e batia no estômago inchado com a mão; o outro, um rapaz de avental emplastado de sangue, fumava um cigarro torto. (…) Depois de mim entrou um homem, aparentemente um ex-soldado, trazendo um jovem carneiro de um ano, preto com uma marca branca no pescoço, de patas amarradas. Este animal ele o pôs sobre uma das mesas, como se numa cama. O soldado velho saudou os açougueiros, que evidentemente conhecia, e começou a perguntar quando o seu patrão lhes permitia ir embora. O camarada com o cigarro aproximou-se com o facão, afiou-o na borda da mesa e respondeu que estavam de folga nos feriados. O carneiro vivo estava ali deitado, tão silencioso quanto o morto e inflado, a não ser por sacudir nervosamente o rabo curto e os lados a se alçarem com mais rapidez que de costume. O soldado baixou gentilmente, sem esforço, a cabeça levantada; o açougueiro, sem parar de conversar, agarrou com a mão esquerda a cabeça do carneiro e cortou-lhe a garganta. O animal tremeu, e o rabinho endureceu e parou de abanar. O camarada, enquanto esperava o sangue correr, começou a reacender o seu cigarro, que se apagara. O sangue corria, e o carneiro começou a agonizar. A conversa continuou sem a mínima interrupção. Era horrivelmente revoltante.

Para nós, hoje, seria um alívio (ainda que um alívio questionável) descobrir que os matadouros de agora são menos “revoltantes” do que aquele que Tolstói descreve. A verdade é bem outra. A frieza com que os animais são mortos é exatamente a mesma. São diferentes apenas duas coisas: hoje, os animais são mortos em escala industrial, no que poderíamos de chamar de verdadeiras “linhas de desmontagem”, que contam com as mais bizarras tecnologias (esteiras com ganchos para suspender as vítimas, serras elétricas, tonéis de escalda etc.); além disso, os matadouros não param mais nos feriados – funcionam noite e dia, ininterruptamente, para atender a imensa e crescente demanda por carne. O que mudou, em suma, foram os números, muito mais grandiloquentes do que seria capaz de imaginar o mais megalomaníaco dos genocidas.

Abro uma revista que assino e que acabo de receber em casa, uma publicação da comunidade judaica, e encontro mais uma matéria sobre os horrores perpetrados pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Descubro que, apesar de o número exato de pessoas exterminadas pelos nazistas nos campos de concentração ainda ser objeto de pesquisa e debate, as estimativas mais avantajadas apontam para 3.5 milhões de poloneses não-judeus, 3.5 milhões de poloneses judeus, 2.5 milhões de judeus de outras nacionalidades, 6 milhões de civis eslavos, 4 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, 1.5 milhões de dissidentes políticos, 800 000 ciganos, 300 000 deficientes, 25 000 homossexuais, 5 000 Testemunhas de Jeová, fornecendo um total de 22 130 000 pessoas (sim, mais de 22 milhões). Faço mais um rápido cálculo mental e começo a rir: esse número representa mirrados 0,04% em comparação com os tais de 50 bilhões de animais mortos a cada ano. Súbito, a imensa tragédia do holocausto adquire contornos de brincadeira de criança. Olho para a televisão e vejo uma repórter alarmada informar que, apesar da constante queda nos números, mais de 2 milhões de pessoas ainda morrem em decorrência da AIDS todos os anos. Faço uma ágil regra-de-três, descubro que esse número – 2 milhões – é o número de animais oficialmente assassinados em apenas 20 minutos e caio na gargalhada. Aprimorando o ensaiado olhar de luto, a repórter passa à nova manchete, a qual ela própria define como “uma carnificina”: 38 mortos no feriado de Natal nas estradas federais de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Recuso-me a fazer qualquer conta sobre isso; naquele momento, a notícia soa-me completamente ridícula, algo que nem merece ser computado.

Como disse, em certos casos, a matemática torna-se capaz de trazer à tona tudo que há de pior em nós, seres humanos, inclusive a frieza perante a desgraça. É quase impossível não ser sufocado por tal número – 50 bilhões! –, frente ao qual todas as misérias humanas parecem ínfimas, desprezíveis, negligenciáveis, assim como aqueles centésimos e milésimos após a vírgula que são dispensados quando, em um problema matemático, enunciamos a resposta final. Não acho bonito, não é isso o que desejo, mas a frieza dos números toma conta de mim. Viro um cubo de gelo. Insensível.

É claro que a maneira mais decente de encarar esses funestos eventos, a matança de animais humanos e não-humanos, é pensar sobre o drama individual, sobre a experiência dolorosa de cada um deles, sobre a tortura física e mental que cada qual, intimamente, teve de suportar antes da morte. Quando resumimos (ou ocultamos) tudo isso através de números, deixamos de lado a real dimensão do drama e corremos o risco da insensibilização. É, de fato, uma pena que sejamos obrigados a conviver com estatísticas tão berrantes e macabras. E é ainda mais lastimável que, ao que tudo indica, essas estatísticas, no ano que se inicia, venham a ser ainda mais berrantes e mais macabras. Recuso-me, portanto, a festejar mais um ciclo de matança que se inicia. Enquanto todos estiverem fazendo a tradicional contagem regressiva para a chegada do novo ano, permanecerei calado. Minha contagem particular começará à meia-noite em ponto: um, dois, três, quatro, cinco… e vou contabilizando, em tempo real, os animais mortos nesse recém-nascido 2010. Mas a matemática, nessas horas, é implacável, e eu logo descubro ser impossível a tarefa: são mais de 38 000 assassinatos a cada segundo.

Ao redor do mundo, o ano já se inicia com a tétrica ceia, repleta de corpos chamuscados sobre as mesas, modesto prenúncio de tudo que está por vir. Paradoxalmente, as pessoas desejam paz umas às outras, com as bocas cheias de nacos de carne. Tenho vontade de repreendê-las, “Tirem o cadáver da boca para falar!”, mas fico quieto. Penso novamente em Tolstói, que há muito já alertava sobre quão vãos serão todos nossos anseios de paz enquanto a violência fizer parte de nossos atos corriqueiros. Dizia ele: “Enquanto houver matadouros, haverá campos de guerra”. Haverá mesmo.

Mais uma vez, os galináceos se salvarão, afinal ciscam para trás e, portanto, não é de bom agouro devorá-los em noite re réveillon; os porcos, no entanto, fuçam para a frente, e, por isso, tornam-se os defuntos mais cobiçados. O leitão da ceia é apenas um infeliz que se adiantou às estatísticas. Enquanto o porco fuça para a frente, fica para trás, bem para trás, perdendo-se na poeira da distância, qualquer sinal de escrúpulo ético.

Um novo ano se anuncia. Vai começar tudo de novo.




*Centro Vegetariano

** Planeta Orgânico

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