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dezembro 15, 2009

Espírito animal e o fundamento moral do especismo

1. INTRODUÇÃO


“Eles verdadeiramente tinham as cabeças, a voz, corpo e pelos de porcos, mas conservavam como antes o “espírito” (noûs) perfeito.” Homero

O que faz com que sejamos indiferentes aos sofrimentos dos animais? Por que razão construímos um sistema ético onde o sofrimento humano, mesmo o da pior das criaturas, é visto como uma ofensa a toda a humanidade, enquanto aproximadamente 100 milhões de animais são mortos todos os anos em experiências científicas, 30 milhões só pela indústria de cosméticos, sem que isto nos provoque qualquer sentimento de compaixão ou piedade? Muitos de nós talvez nunca se tenha perguntado sobre isso.


É que a ideologia especista está tão profundamente enraizada em nossa mente, que nós agimos como se realizássemos um comportamento natural, sem perceber que suas regras são arbitrárias e mais ou menos inconsistentes.


Com efeito, a exclusão dos animais da esfera da moralidade parte do princípio de que eles são destituídos de espírito, isto é, de atividades mentais como o querer, o pensar e o julgar, ou de atributos como a fala, a linguagem simbólica, o livre arbítrio, o raciocínio lógico, a intuição, a consciência de si, o “eu ”ou a produção de cultura.


Embora as ciências empíricas já tenham provado que estes argumentos são inconsistentes, eles ainda se encontram arraigados tanto no senso comum quanto na tradição filosófica e religiosa, e durante séculos tem se constituído em dogma oficial da Igreja Católica.


Em verdade, as noções de alma e de espírito possuem vários sentidos, muitas vezes contraditórios, pois algumas vezes são vistos como sinônimos, outras vezes como gênero e espécie, ou mesmo como entes distintos.



Seja como for, esta questão metafísica cumpre um papel destacado na elaboração da ideologia especista e tem servido como ponto de partida para uma tradição moral concebida em função dos interesses, claros ou ocultos, do homem em detrimento dos interesses das demais espécies.

Este ensaio analisa inicialmente os diferentes sentidos das noções de alma e espírito, que foram mudando de sentido ao mesmo tempo em que o homem foi desenvolvendo a sua capacidade intelectual e seu domínio sobre a natureza.

Em seguida será demonstrado que a partir da noção do espírito, enquanto característica distintiva dos homens em relação aos demais seres vivos, foi sendo construída a ideologia especista que está por detrás da ética que exclui os animais da esfera de consideração moral.

Por fim, pretende demonstrar que embora essa maneira especial de pensar da filosofia grega ainda exerça uma grande influência na tradição ocidental, ela apresenta uma série de contradições e inconsistências que apontam para o seu esgotamento enquanto modelo ético e epistemológico, ao mesmo tempo em que se anuncia o nascimento de uma nova ética, que divorciada da tradição moderna de dominação da natureza pelos homens da prioridade ao subjetivo e ao emotivo em relação ao objetivo e ao científico, e afirma, dentre outras coisas, o valor moral dos animais com fundamento nos sentimentos de compaixão e simpatia, numa relação com o mundo fundada na reciprocidade e no intercâmbio.



2. DA ALMA




“Viver é, para aqueles que vivem, o seu próprio ser,sendo a alma a sua causa e o seu princípio,possuindo, além disso, o ser em potência a enteléquia como forma. Todos os corpos naturais são simples instrumentos da alma, assim sucedendo com os animais e com as plantas, demonstrando que eles possuem a alma como fim.”Aristóteles.



A palavra alma, do latim Anima, Âme em francês, Psykhé em grego, soul em inglês e Seele em alemão, costuma ser empregada como princípio da vida, sensibilidade,movimento ou conjunto das atividades psíquicas.



Inicialmente, é preciso destacar que esta noção não foi uma invenção da filosofia grega, uma vez que o homem primitivo já utilizava essa idéia para explicar, por exemplo, a experiência de abandono do corpo durante o sonho.



Para o homem primitivo as representações feitas em vigília ou nos sonhos tinham o mesmo valor, de modo que aquele duplo só poderia ser explicado se, se admitisse uma dualidade entre o corpo e a alma, constituída de matéria sutil e etérea, capaz de passar pelos orifícios do corpo e viajar para outros mundos.



Somente mais tarde, quando percebe que muitas vezes em seus sonhos ocorriam acontecimentos passados, inclusive com a participação de pessoas que já estavam mortas, é que o homem primitivo concebe a idéia de um terceiro elemento: o espírito.



Com efeito, devido à crença do homem primitivo de que todo acontecimento natural era punição ou recompensa pelos seus atos, o conceito de espírito desempenha um importante papel nos rituais de morte que se encontram na origem de todas as religiões.



Tais rituais decorrem tanto do receio de que os mortos possam voltar para vingar-se dos sobreviventes pelas injustiças que lhes foram impostas durante a vida ou mesmo depois da morte, como o não cumprimento de certos costumes, por exemplo, não sepultar o corpo.



Certamente era esta crença na alma dos mortos como sujeito da retribuição que estava por trás da religião órfica dos primeiros gregos, e só quando a Grécia foi conquistada pelas tribos do norte é que ela foi substituída pela ideia de um espírito celeste, tal como o Zeus olímpico da religião homérica, ao mesmo tempo em que a alma dos mortos deixa de ser sujeito para se tornar o objeto da retribuição.



O conceito de alma, porém, tal qual o conhecemos hoje em dia, como uma entidade em si ou substância que manifesta um princípio autônomo, é uma herança da filosofia grega, onde a palavra Psykhé significa respiração, sopro vital, vida, e provém do verbo psykhein que significa soprar, respirar.



Nos poemas homéricos, mesmo quando a psykhé abandona o corpo, por exemplo, quando Sarpédon desmaia ao ver o cadáver de Heitor, ela retorna através das vias respiratórias.Na morte, porém, ela se afasta definitivamente do corpo e torna-se eídolon, que é uma imagem, um simulacro que reproduz os traços do falecido nos últimos momentos, e somente após o sepultamento vai penetrar no Hades.



Na teoria da alma de Platão se identifica três instâncias da alma, duas provenientes do mundo da percepção, que é o “desejo” - presente nos animais e nas plantas, e que nos humanos se localiza abaixo do umbigo - e a “disposição” – localizada no peito e no ventre dos homens, e também no das crianças, escravos e animais e capaz de compreender pensamentos simples como “meu senhor está vindo em minha direção”; e uma de natureza divina e espiritual: o “pensamento”, exclusividade da espécie humana.



Assim, alma tem o sentido de substância ou causa, sendo vista como a mais importante atuação de um corpo com uma vida em potência, mas que, diferentemente do espírito, não pode dele separar-se, já que constitui a sua própria atividade. A alma, portanto, é a própria vida, e estando para o corpo como a visão para o aparelho ótico .



Para Aristóteles a alma está ligada aos sentidos do corpo e possui várias faculdades, como a vegetativa (threptikón) que é comum a todos os seres vivos; a locomotiva (kínesis),comum a todos os animais, inclusive o homem; a sensitiva (aisthetikós) e a imaginativa (phantasía) presente apenas no homem e em alguns poucos animais.



Em verdade, esta noção de alma, fundamental para o mundo grego, se confunde com o próprio sentido de vida, e para os estóicos, por exemplo, ela representa o sopro congênito e animador (pneuma) da vida onde se revela o autêntico significado das coisas.



Assim, é nesse sentido de corporalidade, de conjunto de faculdades ligadas ao corpo sensível - movimentos, emoções, paixões, dor e prazer físicos, atributos comuns a todos os animais - que esta noção vai ser herdada pelas línguas latinas para designar todos os seres animados (animale), em outras palavras, todos os seres que têm uma alma como princípio vital.



Com efeito, a alma é semente e vida interior que se expressa em aparências exteriores como num olhar ou num gesto que transborda o corpo e promove a decolagem do ser, “ultrapassa seus limites, esconde-se nele, e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele.”



3. DO ESPÍRITO





“Mas, no caso da mente e da faculdade do pensamento, nada se encontra clarificado: parece existir um tipo diferente de alma, só ela admitindo ser separada, como o é aquilo que é imortal daquilo que é mortal. Todavia, sobressai claramente do que acabamos de dizer o fato de outras partes da alma não serem separáveis, como alguns sustentam.” Aristóteles



A noção de “espírito”, noûs para os gregos, Mind em inglês, Espirit em francês, Geist em alemão, por sua vez, pode assumir vários significados, embora a concepção grega de entendimento ou alma intelectual seja predominante.



Desligado de qualquer organismo e livre pelo espaço - diferentemente da alma que passa a maior parte do tempo no interior do corpo - o espírito é imortal, e mesmo depois da morte do corpo continua a existir, embora, no início, se acreditasse que apenas os homens, que a opinião pública atribuísse virtudes especiais, possuíssem espírito (mana).



Como vimos, na tradição filosófica grega além do corpo físico (soma) e da alma (psykhé), um terceiro elemento diferencia o homem das outras espécies: um espírito (noûs) independente do corpo, através do qual se realizam as atividades da vita contemplativa.



Uma coisa, contudo, que é particularmente notável é que o pensamento, enquanto atividade fundamental do homem, foi uma das primeiras descobertas dos filósofos gregos, a partir do momento em que eles tomaram consciência da separação entre o corpo e a alma, e também entre a alma e o espírito, já que somente a partir do Século I da era cristã é que Paulo de Tarso vai cunhar o conceito de vontade, da mesma forma que somente no Século XVIII Kant concebe a capacidade de julgar como uma atividade espiritual independente.



Na Antiguidade Clássica, porém, esta noção de espírito costumava ser utilizada com o sentido de “eu” imaterial consciente que controlava as instâncias corporais da alma, tais como a paixão, o desejo e a ação, assegurando ao homem uma identidade perfeita desde o nascimento até a morte, pois para os órficos o corpo procedia da terra enquanto o espírito era proveniente dos céus.



Assim, com o corpo morrem o instinto (thymós) e o entendimento (nôus), embora a alma (psykhé) possa recuperar por alguns instantes o entendimento, e o eídolon de Aquiles pôde dialogar com Ulisses e transmitir-lhe uma opinião melancólica sobre a outra vida. Em outra passagem da Odisséia quando na Odisséia Circe transformou os companheiros de Ulisses em animais semelhantes a porcos, eles ainda assim conservaram o Nôus.



Seja como for, essa dicotomia entre a alma e o espírito de certa forma conciliava o medo da morte com a teoria da retribuição, até que Platão veio fundamentar filosoficamente esta “religião de almas”, fazendo coincidir as noções de espírito e das idéias inatas, segundo uma fórmula de igualdade ou justiça retributiva que concede o bem para o bom e o mal para o mau.



Por influência da doutrina da transmigração das almas de Pitágoras, Platão concebe o espírito como uma alma imortal constituída de uma substância homogênea semelhante às ideias imutáveis.



Isto se deve ao fato de que para Platão apenas aos iguais era dado conhecer um ao outro, e como apenas o espírito tem acesso às ideias, eles acabam por ser a mesma coisa, o que nos obriga concluir que o espírito, assim como as ideias, existem antes do homem sobre a terra, da mesma forma que existirá depois da sua morte.



Com efeito, é a partir desta doutrina que o conhecimento vai ser concebido como reminiscência de vidas passadas, já que esta é a única possibilidade de cognoscibilidade do justo pelo homem, tendo em vista que a verdade habita um espaço transcendental.



No Mito de Er, por exemplo, que é a parábola final da República, após falecer, um pastor é conduzido ao reino dos mortos, onde tem a oportunidade de contemplar o saber verdadeiro. Ali também fica sabendo que os espíritos devem renascer em outros corpos e purificar-se dos erros passados.



Inobstante, os espíritos podem escolher o corpo no qual pretendem reencarnar, mas no caminho de volta eles devem beber das águas do rio do esquecimento (Lethé), de modo que os que escolheram os corpos de um rei, de um guerreiro ou de um rico comerciante acabam por beber muita água, enquanto aquele que escolheu o corpo de um sábio pouca água bebeu. O conhecimento, assim, não seria nada mais do que a recordação dos contatos que os espíritos imortais tiveram com as ideias antes de se fixarem nos corpos.



Nesta concepção, os sentidos do corpo são sempre obstáculos naturais ao conhecimento, pois apenas na contemplação o espírito se encontra livre das perturbações dos sentidos e alcança o verdadeiro conhecimento que reside na recordação.



Esse, no entanto, é o principal impasse na filosofia política de Platão, pois se todo conhecimento (noêsis) é pré-existente e deve ser despertado pela razão para que se exerça por si mesmo através da apreensão das ideias, o governo do rei-filósofo precisa justificar o seu poder, e isso somente é possível quando a verdade que ele teve acesso pela contemplação for válida na esfera dos assuntos humanos, daí a origem dos mitos como os da alma e do espírito, do céu e do inferno .



É assim que no Fedro, Platão vai conciliar a doutrina da pós-existência do espírito presente no Górgias com a doutrina da sua pré-existência elaborada no Menon, concebendo o dualismo entre o corpo e o espírito, onde o espírito simboliza a esfera moral (o bem) que se esforça para libertar-se da influência do corpo (o mal).



No Fedro, o Sócrates platônico, imperturbável antes de cumprir a sentença e tomar a cicuta, diz para Cebes que um homem não deve temer a própria morte quando o seu espírito se encontra consigo próprio e examina as coisa por si mesmo, e sem apelar para o corpo se dirige para o que é puro, eterno, imortal, imutável, renunciando aos desejos do corpo, ao deslumbre das riquezas, à ignomínia e ao opróbrio das dignidades e honrarias.



Outra particularidade é que ao lado das inúmeras faculdades da alma, comum a todos os animais, a filosofia clássica deixa bem claro que apenas o homem possui um espírito, que é uma outra espécie de alma: a alma intelectual (noûs) que se subdivide em espírito passivo, relacionado à alma sensitiva; e espírito ativo, que é forma e produz o pensamento, assim como a luz conduz as cores do estado de potência ao ato.



Com efeito, Aristóteles afirma que enquanto a alma (vegetativa, locomotiva e sensitiva) já existe no embrião, o espírito vem de fora, garantindo assim a possibilidade do homem realizar uma atividade que não possui qualquer conexão com o corpo.



É possível identificar a força desta tradição filosófica, por exemplo, na obra de Hannah Arendt, que utiliza a palavra inglesa Mind com pelo menos três diferentes sentidos, a saber: (1) como vita contemplativa ou esfera das atividades mentais que se opõe a vita ativa; (2) como pensar, conjunto das faculdades mentais do homem; e (3) como pensamento, que é uma das subdivisões do pensar, oposta a cognição ou raciocínio lógico-dedutivo .



Desse modo, se o essencial na vita contemplativa é a invisibilidade, isto é, a eliminação da corporalidade e o desligamento provisório do mundo das aparências através do esquecimento do ser e da busca do sentido das coisas, essa apropriação e desalienação do mundo apenas se manifesta através do uso da palavra e da nomeação das coisas .



Inobstante, esta questão de uma forma ou de outra está conectada à ideia do pensamento grego de imortalidade no sentido de continuidade no tempo, a exemplo do que ocorria com os deuses do Olimpo e com a própria natureza, onde a imortalidade estava garantida pela reprodução.



Em Roma, era na vita activa que o homem, mortal por natureza, gozava de um certo tipo de imortalidade, através da produção de coisas ou da realização de obras, feitos e palavras que deixavam vestígios mesmo após a morte, ao passo que a experiência do eterno, ao contrário da imortalidade terrena da vita activa, só era possível na vita contemplativa, isto é, fora dos negócios humanos.



A queda do Império Romano, porém, demonstra que nenhuma obra humana podia ser imortal, e a partir do momento em que o cristianismo se tornou a religião exclusiva da humanidade ocidental, a busca pela eternidade vai transformar a vita activa do animal político (bios politizos) em serva da vita contemplativa, que passa a partir de então a ser prioritária.



E é justamente esta concepção prioritária de vita contemplativa que mais tarde vai ser absorvida pelo mundo cristão através de Santo Agostinho, para quem a reflexão interior, isto é, a confissão, era a única via de acesso à realidade do espírito.



Guilherme de Ockham, porém, refutava esta concepção, sob o argumento de que sendo próprios do corpo, tanto o pensamento quanto a vontade seriam formas extensas, generáveis e corruptíveis, colocando assim em dúvida a possibilidade da experiência interna dar acesso à realidade do espírito, que seria mais uma questão de crença do que de verdade.



Em Leibniz a palavra Geist tem o sentido de “conhecimento das verdades necessárias e eternas que nos distingue dos simples animais e nos faz ter acesso a razão e as ciências, elevando-nos ao conhecimento de nós mesmos e de Deus. É isso que se chama em nós alma racional ou espírito”.



São muitos os sentidos que o espírito assume, e no idealismo de Hegel, por exemplo, enquanto manifestação da ideia, isto é, da razão infinita, ele adquire um significado bem mais abrangente, embora o espírito subjetivo tenha o sentido tradicional de intelecto ou razão.



Dentro do sistema filosófico hegeliano o espírito objetivo são as instituições humanas fundamentais, como a moral (subjetiva e interior), o direito ( objetivo e exterior) e a ética (unidade do subjetivo e do objetivo na família, sociedade civil e no Estado), enquanto o espírito absoluto é a realidade histórica que revela o mundo dos valores nas artes, na religião e na filosofia.



É também nesse sentido que Dilthey concebe as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) como um ramo do conhecimento que se ocupa das atividades racionais do homem, enquanto para Sprange (Lebensformen, 1914, p. 7) elas são o estudo da formas ultrapessoais ou coletivas da vida histórica .



Em Hartmann, porém, o espírito é sempre objetivo e reside nas instituições histórico-sociais, nos valores institucionalizados ou mesmo nas formas de vida, enquanto superestrutura que se eleva acima do mundo orgânico, tais como as produções culturais como as letras, artes, técnicas, religiões, mitos, ciências, filosofias etc.



É que a esfera do real é constituída em sua base pelo mundo real físico, que é formado, por sua vez, pelos estratos orgânico e inorgânico e sobre o qual se edifica o mundo real psíquico, constituído pelos estratos anímico e espiritual.



Também em Dewey (Experiência e Natureza) o espírito objetivo aparece como um sistema de crenças, reconhecimentos, ignorâncias, aceitações, recusas, expectativas, apreciações de significados instituídos sob a influência do costume e da tradição.



A dicotomia entre alma e espírito tornou-se imperativa na tradição filosófica ocidental, já que os seus conceitos não se confundem, pois enquanto a alma se refere a uma vida interior que expressa às aparências exteriores e expressa o sentido autêntico das coisas, o emprego de metáforas caracteriza a linguagem conceitual que manifesta a vida do espírito (mind).



É este diálogo silencioso de mim comigo mesmo, o pensamento, o lugar onde ocorrem as operações do espírito, da mesma forma que a vida da alma é melhor expressa pelo olhar, pelo som ou por um gesto, e nunca através de um discurso.



Com efeito, como a alma é o lugar de onde surgem nossas paixões, sentimentos e emoções, tais como a dor e o prazer, sua invisibilidade assemelha-se aos nossos órgãos internos, cujo funcionamento ou não-funcionamento nós também percebemos, embora não possamos controlar.



Por conseguinte as paixões têm sua expressividade própria, e assim ficamos vermelhos de raiva, iluminados de felicidade, radiantes de alegria, enquanto a vida do espírito é pura atividade, e sua única expressão é o alheamento .



Como não existem sensações correspondentes às atividades espirituais, as sensações da psique, isto é, da alma, são sentimentos experimentados da mesma forma que o são os órgãos corporais.



Nesta concepção, as afeições da alma são as mesmas para todo o reino animal, naturalmente expressadas por sons inarticulados, enquanto que a distinção e a individuação só ocorre através do discurso, isto é, através do uso de substantivos e verbos, que são os símbolos do espírito.


4. A RAZÃO E A MORAL ESPECISTA




“Os gregos pressentiram que havia algo de errado no abate, mas acharam que podiam compensar isso ritualizando o abate. Faziam uma oferenda, um sacrifício, davam uma porcentagem aos deuses, esperando assim ficar com o resto. A mesma ideia do dízimo. Peça as benções dos deuses para a carne que está a ponto de comer, peça que eles a declarem pura.”John Coetzee



Como vimos, a tradição ocidental, via de regra, exclui os animais de qualquer consideração moral, e a prova disto é que milhares deles são mortos diariamente, muitas vezes para simples deleite dos homens.



Inobstante, desde que o homem adquire a capacidade de refletir sobre os seus atos ele percebe que a conduta de matar os animais é um ato que contém em si uma maldade que lhe é inerente, face as consequências dramáticas para suas vítimas, mesmo quando este ato é praticado para realizar nosso instinto de sobrevivência.



É desse espanto maravilhado (thaumádzein) com o sofrimento e a morte dos animais que o homem tenta encontrar a diferença ontológica entre ele e os outros animais, e acaba por desenvolver uma eticidade que justifica, por exemplo, práticas como a caça, experiências científicas e o abate de animais.



Este não parece ser um problema simples, mas podemos desde logo constatar que a noção de espírito como atributo exclusivo do homem está na raiz da ética que legitima uma discriminação baseada na espécie e permite que os membros da espécie humana, por exemplo, através do pagamento imposto, financiem práticas que exigem o sacrifício de interesses fundamentais dos membros das demais espécies, mesmo que estas práticas visem satisfazer interesses secundários.



Uma ética como essa acaba por se constituir em verdadeira ideologia, demonstrando claramente como as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos escondem a realidade social, econômica ou política, e acabam por se constituírem em poderosos instrumentos de dissimulação da realidade, a serviço da exploração, da dominação e da opressão de um grupo sobre outro.



Assim, além de um lado inclusivo, onde todos os membros de uma espécie são considerados iguais dentro da comunidade moral, a ética especista possui um lado exclusivo, que postula que apenas os integrantes de uma única espécie devem ser considerados iguais.



Esta ideologia tem como pano de fundo a noção de espírito (noûs), que tanto para a tradição filosófica grega como para a religião judaico-cristã é o elemento distintivo entre o homem e os animais, que apenas teriam uma alma perecível (anima) submetida aos desejos e necessidades do corpo. É preciso no entanto saber em quais circunstâncias esta ideologia foi edificada, pois é a realidade histórica que revela o arbítrio da regras e valores sociais.



Inicialmente é preciso ter em conta que o mundo grego, tal como descreve a Ilíada e a Odisséia, era uma sociedade extremamente militarizada, da qual faziam parte uma pequena classe privilegiada, criada pela linhagem e alimentada pela riqueza hereditária, que tinha na coragem pessoal a primeira imposição, e onde a guerra era um evento banal.



Sócrates, Platão e Aristóteles, por exemplo, os principais representantes da filosofia grega nunca simpatizaram com o regime democrático ateniense e sempre criticaram os seus ideais democráticos, onde camponeses e trabalhadores eram considerados iguais politicamente. Era justamente entre os atenienses provenientes das classes superiores, bem nascidos, ricos e educados, como Platão, que estavam os principais admiradores do regime aristocrático de Esparta. Com efeito, Esparta estava muito próxima do ideal aristocrático platônico, já que ali os cidadãos eram treinados desde a infância para ser bons soldados, de modo que o patriotismo, a coragem e a disciplina eram consideradas as principais virtudes.



Este militarismo grego, no entanto, precisava de uma voz, de uma filosofia que o justificasse, e essa voz veio a ser a de Platão, cuja doutrina inspirada no regime espartano estabeleceu as bases ideológicas de um regime aristocrático onde uma minoria de educação e posição superior (os aristoi) deveria governar a maioria ignóbil.Talvez seja essa a razão pela qual os sofistas - professores estrangeiros que ensinavam aos jovens das famílias ricas a arte da vida pública democrática – foram tão combatidos por Sócrates e Platão, que lhes atribuíam, injustificadamente, reputação duvidosa.



É interessante observar que ainda que a filosofia grega tenha sido concebida pelos primeiros filósofos como o amor altruísta ao conhecimento, independentemente das vantagens que ele pudesse proporcionar, em Platão ela vai estar sempre relacionada a vida política, social e religiosa da cidade.Com efeito, a metafísica em Platão não tinha nada daquele saber desinteressado que fora concebido pelos primeiros filósofos, muito pelo contrário, ela exortava a minoria a procurar a verdade e a ordenar a própria vida de acordo com essa verdade e, se possível, até mesmo dirigir a vida na comunidade .



Assim, a teoria do espírito cunhada por Platão vai ser muito útil para os objetivos políticos dos gregos, que vivendo em constantes conflitos e guerras passam a contar como um poderoso instrumento de imposição de obediência, especialmente para aqueles que não estavam capacitados intelectualmente a submeterem-se a autoridade da razão.Inobstante, é essencial recordar que os mitos da alma e do espírito, foram construídos justamente para assegurar a obediência voluntária ao governo do rei-filósofo,e como a própria parábola da caverna descreve, esses contos sobre uma vida futura de recompensas e punições, que o próprio Platão obviamente não acreditava nem pretendia que os filósofos acreditassem , foram concebidos para que as verdades que só o filósofo teve acesso pudessem ser compreendidas, evitando assim a hostilidade dos que se encontravam acorrentados aos grilhões da ignorância.



É justamente como herdeiro desta doutrina que Aristóteles concebe a teoria da “grande cadeia da vida” onde os seres que apenas sobrevivem como as plantas ocupam o degrau mais baixo da escala, acima do qual estão os seres sencientes, conscientes e capazes de experiência, seguidos pelos seres espirituais, que habitam os degraus mais elevados, e por fim, acima deles, ocupando degraus incrivelmente mais altos, estão as divindades.Olhando esta pirâmide de cima, percebemos que abaixo dos deuses, o homem grego ocupa um degrau bastante elevado, seguido pela mulher, que embora deficiente de razão e senso de justiça teria uma pequena parcela de espírito, depois delas as crianças e os loucos, que embora possuam um espírito não podem utilizá-los. Por fim, se encontra o escravo natural, que tendo uma pequena parcela de espírito racional pode ao menos avaliar como o senhor raciocina, embora não possa raciocinar por si próprio.



O postulado mais interessante desta doutrina, porém, é que ela afirma que ainda que os animais sintam dor e prazer, apreendam e experimentem os fenômenos, eles são privados de um mundo espiritual, isto é, de pensamentos, crenças ou raciocínios, e, portanto, eles são incapazes de distinguir um ato de justiça de uma injustiça, mesmo que este ato decorra em seu próprio prejuízo.Mesmo o Estoicismo, que sucede a filosofia clássica, vai compartilhar dessa posição aristotélica de que o universo opera de acordo com um plano divino e que os seres são criados em benefício uns dos outros, e assim como as plantas foram criadas em benefício dos animais, os animais foram criados em benefício dos homens.



Com efeito, fruto da combinação do destino homérico, com o materialismo dos naturalistas, o “fogo” heraclitiano, a equivalência socrática de virtude e conhecimento, a desvalorização platônica do corpo e o sentido aristotélico de “propósito” natural, o estoicismo tem como tese fundamental a resignação e a aceitação dessa ordem moral imparcial e inevitável do universo.Para os estóicos o homem personifica o princípio e o propósito fundamental do cosmo, e é constituído de (1) um substrato “passivo” ou simples “matéria” e de (2) um sopro (pneûma) como princípio material “ativo”, com o sentido de propósito, inteligência e razão, como o fogo do artesão.



Como o que distingue os seres humanos dos animais e os fazem participar da natureza divina é a razão, toda vida natural é sempre vida irracional e por isso os animais não podem ser incluídos na esfera da moralidade.

Em verdade, em alguns pontos o estoicismo se contrapõe a Aristóteles, como por exemplo, na defesa da igualdade entre todos os seres humanos, uma vez que no estoicismo os escravos e as mulheres ocupam o mesmo degrau que o homem grego, e estão habilitados a raciocinar o suficiente para compreender as regras do direito natural, razão pela qual Crisipo refuta a teoria aristotélica do escravo natural.



Sem embargo, quase um século depois de Aristóteles, Crisipo vai afirmar que os cavalos e os bois existem apenas para trabalhar para o homem, da mesma forma que o porco existe para ser abatido e servido como alimento.

Panécio de Rodes e Posidônio de Apaméia (Estoicismo Intermediário), Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio (Estoicismo do Último Período), porém, vão introduzir estas ideias no mundo romano, e elas acabam por exercer uma grande influência nas ciências, na ética e no direito romano, de modo que os animais não tiveram uma melhor sorte sob o governo dos Césares.



Com o declínio do Império Romano, porém, essa herança filosófica passa a ser da Igreja Católica, de modo que os seus principais representantes, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, a partir da teoria da grande cadeia da vida vão ressaltar que a capacidade de pensar é um atributo espiritual exclusivo do homem, e portanto, é a diferença fundamental entre ele e os demais seres animados. É que para os cristãos na ordem natural o imperfeito deve sempre servir ao perfeito, do mesmo modo que o irracional deve estar a serviço do racional.



Santo Agostinho, por exemplo, refuta todos aqueles que acreditam ser pecado matar um animal, ao afirmar que é a providencia divina que permite o uso desse seres pelo homem de acordo com a ordem da natureza, tendo em vista que as “bestas” não possuem capacidade de pensar, e portanto não podem, através do livre arbítrio participar do acordo político.



Para São Tomás de Aquino, em cuja doutrina se encontram os fundamentos do pensamento medieval, assim como os pulmões são para o benefício do coração, todas as partes do universo são destinadas ao benefício do todo, da mesma forma que “a substância intelectual utiliza as demais em seu próprio benefício, para a perfeição do intelecto, que vê a verdade como em um espelho, ou para a execução do poder e desenvolvimento deste conhecimento, e da mesma forma que um artesão desenvolve a concepção de sua arte na matéria corpórea, o homem sustenta o seu corpo através de uma alma intelectual.”



Com o fim da Idade Média, porém, o “Renascimento” vai promover o retorno do homem ao centro das preocupações artísticas e filosóficas, preparando as bases para o antropocentrismo moderno.É importante notar que o humanismo renascentista não tinha um sentido de humanitarismo, enquanto tendência a agir com humanidade , ele apenas pretendia trazer o homem de volta ao centro das preocupações filosóficas, lugar este que fora ocupado por Deus durante o pensamento medieval.



Com efeito, já na primeira metade do Século XVII ,Descartes inaugura a filosofia moderna, levando ao extremo a tradição aristotélico-tomista ao afirmar que a linguagem é a única prova de que os homens possuem um espírito capaz de pensar, sentir e raciocinar, e desde que os animais são incapazes de sentimento ou de pensamento, eles não passam de simples autômatos.



Segundo Descartes mesmo os loucos, as crianças e os surdos-mudos são capazes de criar por si mesmos, sinais através dos quais se fazem entender, enquanto um papagaio, embora possa pronunciar certas palavras, não consegue demonstrar o que pensa sobre aquilo que diz, o que prova que os animais não possuem absolutamente nenhum espírito.Na verdade, o racionalismo mecanicista de Descartes fora cunhado sob forte influência da nascente fisiologia, e permitiu que a sociedade ignorasse o “aparente” sofrimento dos animais em experiências feitas por residentes no famoso Convento de Port-Royal, onde o próprio Descartes realizou várias vivissecções.



É interessante ressaltar, nesse contexto, o pensamento de outro racionalista, Leibniz, para quem os animais não são produto do caos ou da putrefação, mas de uma concepção, posto que o corpo orgânico já existe mesmo antes de concebido, de modo que não apenas a alma (espelho do universo) é indestrutível, mas também o próprio animal, embora ele possa trocar de pele.Na sua Monadologia, Leibniz concebe os seres como forças-vivas e não como máquinas, embora nessa união entre o corpo e a alma, cada qual siga as suas próprias leis: a alma, a lei da causa final, e o corpo a lei da causa eficiente ou movimento, embora eles concordem entre si em virtude da harmonia pré-estabelecida para todas as substâncias, que são representações de um universo comum.Assim, Leibniz acredita que a alma ordinária dos animais é um espelho ou imagem viva do universo e da criação, enquanto o espírito humano é uma imagem da divindade, embora a relação de Deus com os homem não seja uma relação tal qual a de um inventor com sua máquina ou dos homens com os animais, mas uma relação semelhante à de um príncipe com seus súditos ou de um pai com seus filhos.



A esfera da moralidade, portanto, seria constituída pela totalidade dos espíritos que formam a Cidade de Deus, o mais perfeito Estado possível, submetido ao mais perfeito dos monarcas.A partir da noção de espírito a Modernidade vai levar às últimas consequências o processo de reificação dos animais, findando por negar-lhes a própria animalidade, isto é, a posse de uma alma sensitiva (anima), já que no paradigma cartesiano, pouco a pouco, o animal deixa de ser um ente animado para se transformar numa simples coisa (res), mero objeto, visível e disponível, isto é, ao alcance da mão.



No empirismo inglês, que se contrapõe aos racionalistas ao conceber a mente como uma folha de papel em branco que vai pouco a pouco sendo preenchida pelo conhecimento, a partir de sucessivas experiências dos sentidos, nós podemos encontrar os primeiros passos em direção ao rompimento com a crença exacerbada num mundo espiritual como exclusividade da espécie humana.Enquanto na tradição racionalista todo conhecimento encontra fundamento na espiritualidade, o empirismo de Hume, por exemplo, vai identificar nos animais a presença de características físicas e atividades mentais muito próximas as dos homens, e nesse sentido Hume prepara as bases para a revolução darwiniana, que mais a frente vai romper definitivamente com a barreira filosófica construída entre o homem e as demais espécies.



Outro empirista, Locke, chega a afirmar que muitos animais têm a faculdade de apreender e reter as ideias que lhes são trazidas a mente, embora negue que eles façam uso de qualquer signo geral ou de ideias universais, uma vez que não possuem a faculdade de abstração ou de produção de ideias gerais através do uso de palavras ou qualquer outro signo geral.Para Locke, como os animais não conseguem ter qualquer ideia completa, embora eles não sejam simples máquinas, não se pode negar que eles possuem alguma razão, ainda que esse raciocínio seja utilizado apenas para a construção de ideias particulares sobre fatos recebidos diretamente pelos sentidos, vez que a capacidade de construir ideias gerais abstratas seria uma característica exclusiva dos homens.



Esta posição vai encontrar em Berkeley um crítico ferrenho, pois embora ele admita que não existem indícios de que os animais utilizem signos gerais ou palavras para representar ideias universais, e que tampouco têm capacidade de abstração ou de ideias gerais, também a maioria dos homens são incapazes de abstração, e que nem por isso podemos negar a sua humanidade.Esse é um dos principais impasses da filosofia moderna, pois para Hegel a capacidade de abstração é justamente um distintivo do homem comum, e não do homem de cultura, pois é o homem comum que pensa através de generalizações, quando, por exemplo, vislumbra num criminoso apenas essa qualidade abstrata, destruindo nele todo o resto de humanidade, de modo que quanto mais baixo o nível intelectual, mais abstrato, posto generalizante, o seu pensamento.



É que em Hegel a essência do espírito é a atividade que se constitui ao mesmo tempo em produto, início e fim, e é esta essência que ele chama de liberdade, tendo em vista que o espírito não é um ser estático, mas a negação de tudo que ameace destruí-lo.



O que caracteriza o espírito, portanto, é esse produzir-se, esse ser objeto de si mesmo, esse conhecer-se a si próprio que falava Sócrates, e é isso que torna o homem livre, ao contrário dos animais que não existem para si próprios. O espírito que não se sabe livre se coloca na posição de escravo, que se contenta com a escravidão por não saber que esta posição lhe é imprópria.A diferença específica do homem em relação aos animais, portanto, residiria no fato de que apenas o homem tem conhecimento de si mesmo, apenas ele é um ser pensante, pois sua realidade é idêntica à sua idealidade.



Com efeito, é esta capacidade de pensar a si mesmo como um “eu” que permite ao homem controlar seus instintos, substituindo as demandas de satisfação pelo reino do pensamento, ao contrário dos animais onde estes reinos coincidem, e apenas através da dor e do medo podem ser controlados. Em suma, como espírito, o homem não possui uma existência imediata se não estiver essencialmente voltado para si mesmo, e esta função de mediação é um momento essencial do espírito.



Para Schopenhauer, mesmo o último e menor dos animais tem consciência do seu eu, do seu mundo e do não-eu, e para provar isto bastaria que um cartesiano entrasse na jaula de um tigre para se dar conta da diferença que o animal faz entre o “eu” e o “não-eu” .



Devemos uma posição bastante singular sobre esta questão a Kant, pois embora o seu idealismo transcendental procure uma conciliação entre as disputas entre os racionalistas e os empiristas, para ele nada impede moralmente que os animais sejam objeto do labor humano, consumidos ou destruídos.Para Kant os animais não são auto-conscientes, e portanto existem apenas como instrumentos destinados a um fim, e esse fim é o homem, de modo que os nossos deveres para com os animais são apenas indiretos, pois o seu verdadeiro fim é a humanidade.



Outra doutrina que merece destaque é o materialismo dialético de Marx, que acredita que a espécie humana se caracteriza por ter uma natureza espiritual, capaz de tomar as demais espécies – e também a si própria – como objeto de conhecimento. Embora o homem precise da natureza inorgânica (alimentos, calor, roupas, moradia, etc) para sobreviver, é a atividade consciente e livre que o caracteriza, pois a vida animal é apenas meio de vida.O homem, ao contrário, torna a sua atividade vivente em objeto de sua vontade e de sua consciência, e é com a criação de um mundo de objetos através do trabalho sobre a natureza inorgânica que o homem demonstra a sua consciência.Marx afirmou que embora os animais construam ninhos, casas etc, eles só produzem o que precisam para suas atividades imediatas ou de sua prole, enquanto o homem produz mesmo quando está livre de necessidades físicas.



Por outro lado o animal produz apenas de acordo com o padrão de sua espécie, enquanto o homem produz de acordo com os padrões de todas as espécies, de modo que o homem se duplica não apenas através da consciência e do intelecto, mas também na realidade, criando o seu próprio mundo físico.



Mas que é isso que nós denominamos razão, que os humanos se vangloriam tanto em possuí-la? Será que ela constitui mesmo a essência do pensamento ou de Deus, ou pelo contrário, como afirma a Elizabeth Costello de John Coetzee, ela é apenas “a essência do pensamento humano, ou pior, a essência de apenas uma tendência do pensamento humano” .

A razão é concebida nos dias atuais como a habilidade de ver e de responder a relações, isto é, a faculdade de inserir-se no seu verdadeiro entendimento, enquanto a inteligência é a faculdade pela qual, através de experiências e associações, as atividades são adaptadas a novas circunstâncias.



Segundo Lloyd Morgan a experiência individual, a associação e a imitação são as principais fontes da inteligência, enquanto a explicação e a adequação intencional são os objetivos da razão, através da qual é possível percebermos o certo e o errado, adaptando a nossa conduta a partir do entendimento das relações envolvidas.Assim, a racionalidade relacional é uma habilidade baseada na memória, que percebe e utiliza relações, enquanto a racionalidade deliberativa requer que o indivíduo seja introspectivo e auto-consciente, além de possuir a capacidade de falar sobre a fala (metalinguagem), que é uma característica apenas dos seres humanos e de certos primatas, ainda que muitos humanos com deficiências mentais também não possuam esta habilidade.



Para Hume tanto os homens quanto os animais “aprendem muitas coisas da experiência e inferem que os mesmos eventos hão de sempre derivar das mesmas causas” e tanto os animais como as crianças, o homem comum, e mesmo os filósofos na sua vida ativa não são guiados pelo raciocínio em suas inferências.A diferença entre a razão humana e a razão animal é a mesma que faz com que alguns homens superem os outros em atenção, memória e observação, e isso faz uma grande diferença para o seu raciocínio, habilitando-os a desenvolver uma extensa cadeia de conseqüências e formar máximas a partir de observações particulares.

Assim, todo raciocínio experimental é instintivo e atua em nós sem que seja reconhecido, e é esse mesmo instinto que ensina o homem a evitar o fogo, da mesma forma que ensina uma ave a incubar e cuidar dos seus filhotes.Para Hume, esse anti-descartes, o objeto da experiência é o conteúdo da consciência (percepção), de modo que as impressões, isto é, as percepções sensíveis e internas, tais como os afetos, emoções e atos de vontade se manifestam no espírito, enquanto as ideias ou pensamentos são cópias das impressões, tais como a reflexão, lembrança e imaginação. Desse modo, a diferença entre eles é apenas no grau de intensidade, onde a dor é a impressão e a lembrança da dor a ideia.

5. A LÍNGUA ESPIRITUALSe olharmos mais de perto, entretanto, verificamosque o que é verdadeiro para o espírito, a saber, que a linguagem metafórica é a única maneira que ele tem de “aparecer externamente para os sentidos” – mesmo essa atividade muda, que não aparece, já constitui uma espécie de discurso, o diálogo silencioso de mim comigo mesmo -, não é verdadeiro para a vida da alma. “Hannah Arendt







Cientistas reunidos num Seminário Internacional realizado no ano de 2000, em Cortona, na região da Toscana na Itália, chegaram a conclusão de que a história da língua tem um logo caminho, cujas origens se encontram há 65 milhões de anos, quando os musaranhos, pequenos mamíferos comedores de insetos, passaram a subir nas árvores das florestas para melhor se adaptarem ao meio ambiente, oportunidade em que desenvolveram uma visão binocular, tridimensional e colorida, além de um dedo polegar oponível aos demais, o que facilitou a sobrevivência da espécie.



Sem o desenvolvimento dessas duas características, milhões de anos depois, o ser humano, que descende daquele animal, jamais poderia ter desenvolvido a linguagem, pois a ausência de uma visão tridimensional e colorida tornaria impossível a ele compreender o seu meio ambiente e comunicar-se com os demais, por exemplo, para informar onde haviam alimentos.



Por outro lado, sem o polegar oponível aos demais dedos, a mão não teria se desincumbido da função de ajudar na locomoção e permitido ao Australopithecus afarensis assumir a postura ereta.Livre daquela função, a mão também libertou a boca da tarefa de segurar os alimentos, e após várias transformações anatômicas relacionadas a postura ereta , ela ficou disponível para outras ocupações, como a fala.Além disso, o desenvolvimento de um polegar oponível aos demais dedos permitiu que as mãos passassem a dividir as tarefas, com a direita se especializando na manipulação de objetos (alimentos, paus, pedras) e a esquerda na localização espacial.



Esta lateralização do cérebro nos primatas permitiu que o hemisfério esquerdo do córtex cerebral passasse a coordenar os movimentos do lado direito do corpo e vice-versa, e com o tempo o lado esquerdo assumiu o controle do mecanismo da linguagem.Muitos cientistas acreditam que há 15 milhões de anos atrás, as florestas africanas regrediram, dando lugar às savanas, o que obrigou algumas espécies de primatas a viver nesse novo habitat, embora alguns tenham permanecido nas pequenas florestas que restaram, ricas em concentração de alimentos vegetais, e acabaram por desenvolver um poderoso aparelho mastigatório, tal como encontramos hoje em dia nos grandes primatas, já que eles precisavam aproveitar ao máximo os vegetais disponíveis.



Os ancestrais do ser humano, todavia, aqueles que passaram a viver em grandes territórios de savana, desenvolveram um mapa mental mais sofisticado, o que determinou o aumento do seu tecido cerebral, o que findou por lhes modificar as proporções entre o crânio e face.



Como consequência deste aumento dessas proporções e da postura ereta, o bulbo raquidiano, que une o tecido cerebral ao tecido nervoso da medula da coluna vertebral, deixou de ser horizontal e se verticalizou, permitindo que a laringe (o oco da garganta) afundasse e trouxesse consigo a língua, que ficou mais próxima da garganta.



Esta mudança foi crucial para o desenvolvimento da fala, pois permitiu que a laringe se tornasse uma caixa de ressonância aperfeiçoada, ao mesmo tempo em que a língua passou a dispor de mais espaço na boca, e essas duas mudanças foram fundamentais para o funcionamento do aparelho fonador do homem, pois tornou-o capaz de emitir os aproximadamente cinquüenta sons básicos que se combinam no processo de comunicação. Além disso, pelo fato de na savana haver menos alimentos disponíveis, os hominídeos passaram a se alimentar da caça de animais de grande porte, e desse modo foram obrigados aprender a agir em grupo e a usar instrumentos.



Com efeito, foi essa necessidade de ensinar aos demais o uso dos instrumentos e da divisão do trabalho que fez com que os antropóides desenvolvessem uma linguagem inicialmente gestual, e na medida em que suas mãos foram se desocupando do manejo dos instrumentos, eles também desenvolveram o que denominamos hoje de linguagem oral. Nietzsche já havia constatado que a linguagem e a consciência de si são conceitos interdependentes, pois o problema da consciência de si só aparece para o homem quando ele se dá conta da sua descartabilidade, já que é possível pensar, sentir, ter vontade, lembrar e até mesmo agir sem entrar na consciência.



A astúcia e a força da consciência são proporcionais a capacidade de comunicação do homem ou do animal, e essa capacidade por sua vez é proporcional a necessidade de comunicação, de modo que o homem desenvolve a sua capacidade de comunicação e a consciência de si quanto mais em situação de perigo ele se encontre.Nietzsche, sem dúvida, constatou que o homem é um animal vulnerável, e por isso precisou da ajuda de seus companheiros para proteger-se dos perigos que o obrigavam a expressar o seu desconforto.



Nesse sentido, o homem “teve que se fazer entender”, de modo que a consciência de si se desenvolve sob pressão da necessidade de comunicação, embora esta seja apenas uma pequena parte do pensamento, a parte mais superficial, ou mesmo a sua pior parte, posto que expressa através da palavra, de modo que o mundo que nós podemos tornar consciente é apenas o mundo simbólico e superficial, o mundo vulgarizado e generalizado que caracteriza a mediocridade do rebanho.



Muito próximo dos racionalistas e, portanto, do mundo grego, Heidegger afirma que “o animal não tem mundo, nem meio ambiente (Das Tier hat keine Welt, auch keine Umwelt)”, e pretende provar que do fato de que o mundo é espiritual, e de que o animal não acede a esse mundo, resulta que ele também não tem mundo espiritual.



Nas Conferências Semestrais de inverno em 1929-1930, porém, em Friburgo, onde Derrida fora seu aluno, em resposta a questão “que é o mundo”, Heidegger apresenta teses metafísicas: 1. A pedra é sem mundo (weltlos); 2. O animal é pobre de mundo (weltarm); 3. O homem é formador de mundo (weltbildend) . Neste contexto, Derrida questiona sobre o sentido de weltarm? Pois a palavra pobreza (Armut) pode muito bem significar uma diferença de grau que se situe entre a indigência e a riqueza (Reichtum)?.



Por outro lado, dado que o mundo é espiritual e o animal é pobre de espírito, ao passo que o homem é rico, não teria o animal, ainda que num grau limitado, um espírito, diferentemente da pedra que não tem nenhum espírito (weltlos)?



Heidegger, no entanto, diz que o animal é privado de mundo, no sentido de que “ele não tem mundo”, sendo necessário distinguir o “ser privado de mundo do animal” do “não ter mundo da pedra” e do “ter-um-mundo do homem”, pois para ele essa diferença não é de grau, com em Darwin ou Schopenhauer, mas de essência, de modo que o animal é privado, no sentido de ausente de espírito/mundo (Entbehrung): o animal não teria uma relação menor, um acesso mais limitado ao ente, mas uma outra espécie de relação.



Ora, o não ter mundo do animal (Nicht-haben von Welt) tem um sentido radicalmente diferente do da pedra, que é sem mundo (weltlos), e esta privação significa que o não-ter um mundo é um modo de tê-lo, e significa mesmo uma certa relação com o ter-um-mundo, o animal é privado de mundo porque pode ter um mundo, e esta aparente contradição lógica (o animal tem e não tem mundo) aproxima Heidegger da dialética de Hegel. A essência do homem não estaria, portanto, no orgânico (o corpo explicado científicamente) nem na alma imortal, nem na força da razão ou no caráter de pessoa, mas na ec-sistência, em sentido diverso de existentia (realidade) que se contrapõe à essentia , mas no sentido de exportar a Verdade do Ser .



A pedra não tem acesso ao ente, enquanto o animal acede ao ente, embora não aceda ao ente como tal e ao seu ser, como ocorre com o homem, vez que o lagarto permanece sobre a rocha, ao sol, mas não se reporta a rocha e ao sol como tais, como aquilo a respeito do qual se pode colocar questões e dar respostas, face a incapacidade do animal de nomear as coisas, de modo que o salto do animal que vive ao homem que diz é maior do que o da pedra sem vida para o animal vivo, pois o animal não apenas esta fechado ao ente, ele é fechado a própria abertura do ente.



Assim, para Heidegger não existe uma pré-sença (Da- sein) animal, pois embora ele se ache numa tensão com seu ambiente, nunca estará posto livremente na “clareira do ser”, pois lhe falta uma linguagem, que é o advento do próprio Ser que se clareia e se esconde.



Essa é a mesma lógica de Aristóteles, que mesmo sem aceitar a doutrina das ideias de Platão, segue-a no principal, ao separar o modo de vida teórico (bios theoretikós) de uma vida devotada aos afazeres humanos (bios politikós).Com efeito, ao conceber o homem como zoon politikon no sentido de “ser vivo dotado de fala” (zoon logon ekhon) - equivocamente traduzida para o latim como animale rationale - Aristóteles não pretendia definir o homem em geral, nem indicar a fala ou a razão (logos) como suas mais elevadas capacidades, mesmo porque para ele esta capacidade estava na contemplação (nous) - mas para distingui-lo dos bárbaros, escravos e animais, que eram aneu logou, isto é, destituídos, não da faculdade de falar, mas de um modo de vida onde o discurso era a principal preocupação: a vita activa.



Esta ausência espiritual nos animais importa na ausência da fala e da capacidade de comunicar-se através de “signos convencionais”, já que enquanto os homens utilizam símbolos os animais utilizam apenas signos ou sinais, ou em outras palavras, enquanto os homens utilizam signos artificiais os animais se restringem a sinais instintivos e naturais, que se encontram na essência da alma.



Nessa concepção a linguagem ressalta a liberdade do homem por permitir a generalização, a reflexão e a conceituação, conduzindo-o para diferentes locais e tempos, o que justifica a sua participação na esfera da moralidade.

Com efeito, é nessa diferença entre a linguagem proposicional dos símbolos que designa ou descreve objetos, e a linguagem emocional dos signos, mera expressão involuntária de sentimentos, que Cassirer pretende encontrar a verdadeira fronteira entre o mundo humano e o mundo animal, pois a fala está decididamente fora do alcance dos macacos antropóides.



Segundo o biólogo Johannes von Uexkull cada organismo não está apenas adaptado (angepasst) mas também inteiramente ajustado (eigenpasst) ao seu ambiente, que de acordo com sua estrutura anatômica possui um sistema receptor dos estímulos externos (Merknetz) e um sistema efetuador que reage a eles (Wirknetz) formando uma única cadeia que ele denomina de círculo funcional (Funktionskreis).



Acontece que o homem descobriu um novo método de adaptação, a saber: o sistema simbólico, e desse modo, existe uma diferença inconfundível entre reação orgânica, que é direta e imediata, e a resposta humana, que é diferida, isto é, interrompida e retardada por um lento e complicado processo de pensamento, pois o homem não se encontra apenas num universo físico, ele se encontra também no universo simbólico, constituído pela linguagem, pelo mito, pela arte ou pela religião, razão pela qual Cassirer entende que nós “deveríamos definir o homem não mais como animal rationale, mas como animal symbolicum“.



Inobstante, será que a linguagem por si só é um atributo capaz de conceder aos homens uma moral e um direito especiais? Também as tribos humanas não foram caracterizadas como destituídas de linguagem, até que se descobriu que elas tinham uma linguagem bastante sofisticada?



Além disso, diversas pesquisas empíricas realizadas por primatólogos, etólogos e psicólogos têm chegado a conclusões bastante distintas do que costuma ser o lugar comum de muitos filósofos. Experiências como as realizadas com Washoe, por exemplo, uma filhote de chimpanzé criada como se fosse uma criança surda, demonstraram que esses animais não só são capazes de aprender a Linguagem Americana de Sinais como também de ensiná-la aos seus descendentes. Washoe, por exemplo, foi filmada fazendo sinais para si mesma enquanto não havia ninguém por perto, e alguns chimpanzés tem obtido um score entre 75 e 85 em testes de QI. Em outra experiência semelhante, o gorila Koko adquiriu um vocabulário de mais de mil palavras, além de entender uma quantidade ainda maior de palavras em inglês. Numa dessas experiências Chantek, um orangotango, roubou uma borracha e mentindo utilizou a linguagem dos sinais para dizer “comida comer” e depois escondeu o objeto no seu aposento.



Assim, as ciências empíricas têm descoberto habilidades linguísticas nos grandes primatas que acabaram por ter significativas implicações na teoria moral, ao demonstrar que a doutrina tradicional que vê a espécie humana como seres ontologicamente distintos dos animais é fundamentalmente falsa e inconsistente.



6. CONCLUSÃO





“Primeiro foi preciso civilizar o homem em sua relação com o próprio homem. Agora é preciso civilizar o homem em sua relação com a natureza e com os animais. “Victor Hugo



Gostaríamos de concluir este trabalho afirmando que os animais não são destituídos de espírito ou de atividades mentais e que eles são capazes de se comunicar através de uma linguagem simbólica prescritiva.

Poderíamos talvez ter discorrido um pouco mais sobre as pesquisas empíricas que comprovam que os animais possuem atributos que em regra são considerados como exclusivos da vida do espírito (mind), o que nos obrigaria a conceder a estes seres um passaporte de entrada para a comunidade moral, de modo que eles poderiam desfrutar dos benefícios de pertencer a esta comunidade, pressupondo que a nossa sociedade goza de boa saúde moral.



As evidências desta espiritualidade animal nos levaria a reconhecer o seu caráter sagrado, de modo que passaríamos a ver neles mais do que semelhanças biológicas, também semelhanças espirituais com a nossa espécie.Ao final, poderíamos elaborar uma síntese lógica do tipo: (a) Todo ser espiritual pensa abstratamente; (b) o animal pensa abstratamente; (c) logo, o animal é um ser espiritual, ou ainda (1) todo ser espiritual se comunica através de uma linguagem simbólica, (2) o animal se comunica através de uma linguagem simbólica, (3) logo o animal é um ser espiritual.



O objetivo deste ensaio, porém, não foi fazer este tipo de análise, mas enfrentar o problema metafísico que consiste em saber o que é isto o espírito, e se ele é acessível aos animais, de modo que tudo que nos resta fazer é demonstrar as contradições lógicas e as fissuras existentes na noção de espírito que nos foi legada pela tradição filosófica grega.



Como vimos, para excluir os animais da consideração moral não é suficiente a simples menção de alegadas diferenças metafísicas ou práticas entre humanos e animais. O ponto chave é que essa diferença deve ser moralmente relevante, com uma importância racionalmente defensável para excluir os animais da esfera da moralidade.



A noção de espírito, pelo contrário, deveria servir justamente para o oposto, e conceder o fundamento para que incluíssemos os animais na esfera da moralidade, e até mesmo concedêssemos a eles um lugar de destaque.



É que entre os próprios homens existem diferenças como as de raça, sexo, sanidade mental, gerações, religiões, capacidades de raciocínio e pensamentos abstratos, etc, sem que essas diferenças justifiquem a exclusão de qualquer um deles do quadro de consideração moral.



Se o Sócrates platônico admite que o espírito de um homem pode reencarnar no corpo de um animal, como pode ser que a vida espiritual seja exclusividade do homem? Existiriam, por acaso, animais com espírito e outros não? Esta afirmação nos parece violar os princípios lógicos da identidade e da não contradição.



Por outro lado, salta aos olhos a inconsistência de doutrinas como a dos autômatos de Descartes, que nega que os animais possam sentir dor ou prazer. Na verdade, seria muito difícil encontrar um fisiologista nos dias atuais que continue pensando dessa forma, já que a rigor grande parte dos conhecimentos sobre a dor física dos homens foram descobertas a partir de experiências realizadas com animais.



Da mesma forma, nos parece ainda que a doutrina que entende que os animais devoram as demais espécies porque não possuem noção de justiça também revela uma inconsistência lógica, pois se os homens são os únicos seres que possuem noção do justo, por que razão ele insiste em insultar, escravizar, subjugar e matar as demais espécies?



Para que esta doutrina fosse coerente ela haveria de obedecer uma fórmula tal como:



1. Todo animal é privado de espírito, e não sendo capazes de distinguir o que é certo e errado, devoram os outros animais.



2. Os homens não são sem-espírito, e portanto sabem distinguir o que é certo e o que é errado.



3. Logo, os homens não são animais, e portanto não devem devorar os outros animais.



Estas contradições lógicas não demonstram, pelo contrário, que o fundamento moral do humanismo especista, que exclui os animais da comunidade moral sob o argumento de que elas são privadas da capacidade de pensar e de se comunicar simbolicamente é inconsistente, e logicamente insustentável?



Na verdade, se os animais fossem apenas instinto, eles jamais poderiam ser domesticados, e se o espírito sempre nos conduzisse ao justo jamais nos deixaria praticar tanta crueldade contra seres indefesos.



Heron José de Santana é professor de Direito Ambiental e Direito Constitucional da Graduação e da Pós-graduação do Curso de Direito da UFBA. Mestre em direito econômico e ciências sociais tem se destacado na luta pelos direitos animais, tendo sido o primeiro a escrever, no Brasil, tese de doutoramento em Direito Animal com o título Abolicionismo Animal. É promotor de justiça do Meio Ambiente de Salvador (Bahia), onde atua, junto com associações de proteção animal, em prol da defesa de qualquer forma de crueldade contra os animais. É coordenador da Revista Brasileira de Direito Animal, a primeira revista do gênero na América Latina, e que conta com a contribuição de autores como Tom Regan, David Favre, Laerte Levai, Edna Cardozo Dias, Sônia Felipe e outros. Em 08 de agosto de 2006 foi eleito Presidente do Instituto Abolicionista Animal, instituição que vem somar esforços na libertação dos animais, dando suporte jurídico e fundamentação filosófica, assim como apoio técnico na formulação e ajuizamento de ações em defesa dos interesses dos animais.É colunista do ANDA.



Fonte : Revista Brasileira Direito Animal- Volume 1

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