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abril 23, 2010

Pomerode e a cultura que não poderá ser domada



Marcio de Almeida Bueno

Toda aquela vontade que os que se apegam ao passado têm, de sentar o sarrafo em quem pensa o oposto, de prender e arrebentar se assim pudessem, se fez fato em Pomerode. Para quem bebe a violência como diversão de final de semana, nada mais natural que, no auge da raiva reprimida contra o patrão, a esposa chata, o governo, as contas a pagar, o vizinho e as perspectivas de desemprego, bastou alguém acenar com um posicionamente contrário, para virar alvo. Se o lazer é ver uma parelha de cavalos suando para puxar uma tonelada, o diálogo – que com certeza nunca existiu com letras maiúsculas em seus lares – se faz na base do sarrafo. E toda a cena busca salvaguarda no carimbo burocrático de ‘cultura’.
Curiosamente, a alegação do uso de animais-escravos sempre foi grampeada às palavras ‘necessidade’ e ‘tradição’. Realmente é uma necessidade ver os animais tentando puxar peso de um lado para o outro, sem o qual a vida em um cafundó não faz o menor sentido. E nos altos e baixos do Império Romano, o populacho se divertia com animais lutando entre si, atacando gladiaroes ou comendo cristãos. Tempos depois, Roma se convertia ao cristianismo – para ver como a ‘tradição’ muda de rumo conforme o vento sopra, e só quem chegou atrasado à evolução a ela se apega, como garantia de alguma coisa, como uma reza na hora do aperto. Com aquele medo de não se sentir em grupo, mimetizado com outros nulos como si próprio.
Ver um outro humano, mas diferente na essência da abordagem frente à vida, que refletiu e se desamarrou dos grilhões voluntários da tradição, deve ser muito perturbador para aquele cujos horizontes se encerram na trinca trabalho – refeições diárias – lazer ‘qualquer nota’. E na confusão mental do álccool, da intolerância, na euforia do comportamento ‘hooligan’ de grupo, a resposta é a mais primal e autêntica possível – apedrejar, bater com tacape. A incapacidade de conviver com opinião diferente da sua.
Na defesa dos animais, a grande força opositora é o susto das pessoas, de perceber que gente esclarecida, culta, altruísta – talvez mais do que já tenha visto nos círculos que freqüenta – está dedicando parte de sua vida a levantar a voz por quem segue pisoteado pelas forças invisíveis. Quem é pego de surpresa, arregala os olhos e esperneia como se visse um fantasma – ou um espelho onde o rosto humano pode trazer ou não a expressão de compaixão, esse sentimento assustador que se desloca do noticiário da televisão para… um cavalo? Uma vaca? Um rato branco na escola do filho, um golfinho no Japão?
Não a compaixão com hora marcada, estabelecida para soltar suas comportas no Natal, nem a compaixão que aplaca o remorso do cidadão médio pateta graças ao telefone ao alcance da mão, discando 0300-alguma-coisa. Pode haver uma vontade de se derrubar as cercas entre as espécies, e as castas que se solidificaram com o passar dos séculos, sem vislumbrar lucro ou votos lá adiante, nem empreguinho para parentes, ou conchavos afins – e isso está algo diferente do que se esperava do mundo, e contra o qual se repete um mantra boca-suja. Pelo contrário, é mais fácil que os mecanismos de repressão social ajam para manter o status quo, para que todos se divirtam ao ver o Coliseu fedendo a sangue de cristãos, estrangeiros, escravos, gladiadores, desafetos ou animais. É mais fácil apanhar na rua e ir parar no hospital – no futuro, isso tudo será muito esquisito.
A psicóloga Eliane Carmanim Lima, mestre em Sociologia da Violência e Criminalidade, explica que “esta cultura que vemos nascer é a que se reúne em praça pública para pedir justiça. Se hoje conseguimos enxergar o crime de maus tratos a animais, arbitrado desde 1934, é porque nosso olhar mudou. Atinge a alimentação, a educação, a economia e mesmo hábitos que muitos pensavam estarem resguardados pela ‘tradição’. A mudança segue a galope, cada vez mais célere e indomável. Não poderá ser freada ou domada como têm sido os animais”.

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