Pesquisar neste blogue

dezembro 09, 2009

O Direito dos Animais e os Direitos dos Animais

Por Miguel Moutinho, Presidente da ANIMAL



O que é o Direito dos Animais



O Direito dos Animais é uma das mais novas áreas de investigação, estudo e prática do Direito. Esta nova ramificação das ciências jurídicas tem como objectivo construir as bases jurídicas teóricas que sirvam de suporte para a aplicação, na prática do Direito - quer ao nível legislativo, quer ao nível da jurisprudência, da análise e interpretação das leis, quer ao nível da advocacia e da litigação jurídica -, de um conjunto de normas legais que têm por fim regular as relações entre os humanos e os não-humanos, sobretudo no que respeita aos deveres (não-recíprocos) dos primeiros em relação aos últimos, e, eventualmente, no que se refere também aos direitos (também não-recíprocos) dos últimos em relação aos primeiros. Esta aplicação da teoria jurídico-normativa na prática do Direito é uma continuação da tarefa do Direito dos Animais, que tanto tem um carácter teórico como tem um carácter prático.



O fim último do Direito dos Animais é encontrar, criar e aplicar um conjunto de regras para uma convivência entre humanos e não-humanos mais harmoniosa e regulada, que consiga conciliar e equilibrar a salvaguarda dos interesses dos animais que não pertencem à espécie humana com a salvaguarda dos interesses dos animais que pertencem à espécie humana.



Uma vez que o termo “Direito dos Animais” pode originar interpretações incorrectas ou parecer uma expressão em si mesma incorrecta, torna-se não só importante distinguir e referir os dois principais sentidos que este termo pode ter, como também esclarecer que nunca deverá ser entendido como o direito (entendido como lei) que regula ou disciplina as relações entre animais não-humanos. Evidentemente, tal afigura-se absurdo, uma vez que a noção de lei – e, por consequência, a sua teorização e prática – é exclusivamente humana, pelo que não faria qualquer sentido afirmar ou pretender que os não-humanos a entendam, menos ainda que a apliquem.



Usa-se, portanto, o termo “Direito dos Animais” do mesmo modo que se usa o termo “Direito do Mar” (que, como é óbvio, não pode ser razoavelmente entendido como a lei que regula ou disciplina o mar ou os seres que vivem no mar) ou “Direito do Ambiente” (que, como é também óbvio, não pode ser razoavelmente entendido como a lei que regula ou disciplina o ambiente ou o comportamento dos elementos e factores ambientais, naturais ou ecológicos).



Estabelecido este ponto, há ainda um outro ponto a esclarecer, a fim de evitar equívocos desnecessários e mesmo prejudiciais, quer para a compreensão deste texto e das questões que aborda, quer para a compreensão daquilo que é o Direito dos Animais.



Se nos deixarmos sugestionar pelo termo “Direito dos Animais”, num raciocínio superficial, poderemos ser levados a pensar que o Direito dos Animais tem implícito o reconhecimento de que os animais não-humanos têm direitos morais e/ou legais. No entanto, é muito importante deixar claro que essa será uma forma errada de compreender o verdadeiro conceito de Direito dos Animais; a questão sobre se os não-humanos têm ou podem ter direitos morais e/ou legais é um problema teórico a ser resolvido, por um lado, pela ética, e, por outro lado, pela filosofia e teoria do Direito. E é no âmbito da filosofia e teoria do Direito que a vertente teórica do Direito dos Animais estuda também esta questão, havendo uma corrente que defende a perspectiva de que os não-humanos podem e devem ter direitos legais, que correspondam e protejam os seus direitos morais.



O Direito dos Animais: uma perspectiva internacional



Sem nos dar razões para grande espanto, o Direito dos Animais está especialmente desenvolvido nos países de expressão inglesa, nomeada e especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos da América. Poder-se-ia pensar que isto se deve, fundamentalmente, ao facto do Direito nestes países (o chamado Direito de “Common Law”) ser substancialmente diferente do Direito da maioria dos países do continente europeu (o chamado “Direito Civil”), havendo, consequentemente, diferenças significativas nos processos legislativos, assim como na condução dos processos judiciais. Porém, o facto de o Direito dos Animais estar muito desenvolvido nestes países deve-se mais à tradição destes países de atribuírem, desde cedo na sua história, uma séria consideração aos animais não-humanos e aos seus interesses elementares - por oposição ao que ocorreu noutros países, nomeada e especialmente aos países do Sul da Europa, como é o caso de Portugal.



Foi Jeremy Bentham, o filósofo utilitarista inglês do séc. XVIII, que começou por lançar, de forma argumentativa, a questão filosófica sobre o respeito moral que devemos aos animais não-humanos, tendo sido seguido por muitos filósofos, desde essa altura até à actualidade, nomeadamente por Peter Singer, um filósofo utilitarista australiano que é, nos nossos dias, um dos maiores especialistas mundiais em ética, e que foi autor de Libertação Animal (1975), livro que deu origem a um movimento mundial em defesa dos animais não-humanos.



Numa linha teórica diferente da de Singer, mas com o mesmo espírito, Tom Regan, um filósofo deontologista norte-americano, escreveu The Case for Animal Rights (1983), no qual defende que os animais não-humanos têm e podem ter direitos morais. (É importante referir que Singer não defende que os animais não-humanos têm ou podem ter direitos, do mesmo modo que não defende que os humanos os tenham – segundo o utilitarismo, nenhum ser, independentemente da espécie a que pertença, tem direitos. Porém, os princípios que levam Singer, numa perspectiva utilitarista, a defender a libertação animal e a universalização do princípio da igualdade na consideração de interesses, nomeadamente em relação aos não-humanos, são basicamente os mesmos que levam Regan, numa perspectiva deontologista, a defender os direitos dos animais.)



Para além de outros filósofos que têm apoiado as teses de Bentham, Singer e Regan – ou que as têm criticado, mas com vista a propor novas teorias que vão também no sentido de defender os animais não-humanos –, destacam-se também importantes juristas que trabalham estes temas também na área da Filosofia Moral, assim como na área do Direito, como é o caso de Gary L. Francione, Professor de Direito dos Animais na Faculdade de Direito da Universidade de Rutgers e autor de Animals, Property and the Law (1995), entre outras obras importantes de Direito dos Animais.



Os países anglo-saxónicos não só têm proeminentes filósofos e juristas que se ocupam das questões da ética e do direito aplicados aos animais, como também dispõem de um leque bastante vasto de instrumentos jurídicos para garantir uma razoável protecção jurídica aos animais, sobretudo porque atingiram um elevado grau de desenvolvimento cultural, social e moral bastante cedo, tendo tido a oportunidade de estabelecer novos valores e padrões civilizacionais que vários países europeus só mais tarde puderam adoptar. O avanço dos países anglo-saxónicos em relação à maioria dos países europeus deve-se também a um conjunto de condicionantes culturais a que estes últimos estiveram (muitos ainda estão, como é o caso de Portugal) sujeitos.



Enquanto actualmente os países do norte da Europa, nomeadamente a Alemanha, que integrou recentemente a protecção dos animais na sua Constituição, estão muito avançados em matéria de protecção legal dos animais, os países do sul, como é o caso de Portugal, Espanha, Itália e Grécia (e também França, embora de forma menos acentuada), estão bastante mais atrasados neste campo.



Interessantemente, o Brasil - que partilha importantíssimos laços histórico-culturais com Portugal, está imensamente mais avançado do que Portugal neste campo. Desde 1988 que a Constituição Federal Brasileira proíbe constitucionalmente a crueldade contra animais.



Hoje em dia, é comum encontrar nas universidades norte-americanas centros e institutos de estudos de Direito dos Animais, sendo possível estudar nesta área, quer nos estudos graduados (equivalentes às licenciaturas portuguesas), quer nos estudos pós-graduados. Do mesmo modo que, no meio académico norte-americano e inglês, a ética aplicada aos animais não-humanos é uma das áreas da ética aplicada que dá origem a mais debates, conferências e artigos, também o Direito dos Animais ocupa um lugar de destaque nas mais prestigiadas universidades destes países. Esta é, de resto, uma tendência que começa a verificar-se também nos países do continente europeu (além de se verificar igualmente no Brasil), onde, embora com algum atraso, começa a surgir uma forte corrente de estudos, tanto no domínio da ética como no domínio do direito aplicado aos animais não-humanos.



O Direito dos Animais no Direito Português



Da história do Direito Português até à actualidade: a inexistência do Direito dos Animais no Direito Português



Até hoje, o Direito dos Animais está muito pouco desenvolvido no Direito Português. Não tanto porque não haja legislação ou jurisprudência a estudar, trabalhar e usar, mas mais porque, até aqui, tanto por parte de estudantes de Direito quanto por parte de advogados, juristas, investigadores e professores de Direito, tem havido um quase generalizado desinteresse científico por esta área.



À excepção do trabalho desenvolvido pelo advogado Pedro de Azeredo Perdigão, nomeadamente patrocinando processos judiciais quase sempre intentados pela ANIMAL, por algum trabalho nesta área feito pelo advogado e professor Jorge Bacelar Gouveia, nomeadamente também a propósito de acções intentadas pela ANIMAL, de um livro sobre o direito e os direitos dos animais, A Hora dos Direitos dos Animais, escrito pelo professor de Direito Fernando Borges Araújo, e do trabalho legislativo do falecido advogado e político António Maria Pereira, toda a área do Direito dos Animais em Portugal está ainda por explorar.



O surgimento do Direito dos Animais no Direito Português: os desafios jurídicos científicos e técnicos para o Civilismo, Penalismo e Constitucionalismo



Se se pode compreender de algum modo a quase inexistência do Direito dos Animais na história do Direito Português, quer porque esta é uma área nova do Direito, quer porque Portugal tem um pesado distanciamento cultural em relação aos animais, já não se pode compreender tanto a o subdesenvolvimento desta área no Direito Português considerada mais recentemente, sobretudo desde o início do novo século.



O progresso do Direito dos Animais no Direito Português impõe-se, como referi anteriormente, tanto pela necessidade racional de estabelecer legalmente um novo estatuto jurídico dos animais não-humanos que se conforme com a verdadeira natureza destes seres (seres dotados de uma sensibilidade física e psíquica, com vida emocional e inteligente), quanto pelo imperativo ético de adaptar o estatuto jurídico dos animais não-humanos ao seu estatuto moral. Mas, se o estabelecimento de um novo estatuto jurídico dos animais não-humanos é, em si, já uma das grandes questões que o Direito dos Animais deve resolver, há muitas outras que esta nova área das ciências jurídicas deve estudar, de modo incontornavelmente interdisciplinar, com i) o Civilismo, quanto à protecção dos animais no Direito Civil, com ii) o Penalismo, quanto à protecção dos animais no Direito Penal, e com iii) o Constitucionalismo, quanto à protecção dos animais no Direito Constitucional.



Quer do ponto de vista teórico, na construção de bases jurídicas para a protecção dos animais, quer do ponto de vista prático, na produção de legislação, na sua interpretação e na sua aplicação, a interacção do Direito dos Animais com o Direito Civil, o Direito Penal e o Direito Constitucional é uma condição fundamental para o seu desenvolvimento.



Conclusão



Chegados a este ponto, concluímos que o Direito dos Animais se apresenta não só como a resposta a um desafio ético, mas também como um desafio jurídico, levantando várias questões de ordem técnica, numa área que se pode considerar muito estimulante do ponto de vista científico da investigação no Direito.



Por outro lado, e à medida que o Direito for acompanhando, como deve, o desenvolvimento cultural, social e moral dos povos que rege, o Direito dos Animais assumirá uma importância cada vez maior, o que permitirá a muitos juristas e advogados trabalharem profissionalmente nesta área (paralelamente a outra, ou especializando-se nesta), o que virá oferecer novas oportunidades de trabalho na área do Direito, apresentando-se também com essa vantagem.



Com a evolução do modo como os animais são vistos pelos portugueses, a par de uma maior atenção àquilo que a ciência nos diz e a ética nos prescreve, e com as mudanças que se têm dado neste domínio em Portugal, é já só uma questão de (pouco) tempo até que as novas gerações de filósofos e juristas portugueses comecem a desenvolver estudos e trabalho nesta área, para que Portugal comece finalmente a dar passos que, além de levarem o estado português a, de uma vez por todas, saldar as suas muitas dívidas neste campo, habilitarão também a sociedade portuguesa a poder equiparar-se às sociedades mais desenvolvidas quanto à protecção jurídica que destinam aos animais - sendo que Portugal não precisa de seguir apenas o que os outros países já fizeram, podendo e devendo inovar.
 

1 comentário:

Unknown disse...

Olá,
Feliz Ano Novo para você! Gostei muito do seu blog, vou aparecer mais vezes. Apareça você também no meu, Ética para Paz (eticaparapaz.blogspot.com), e depois me diga o que achou.
Um abraço
Tania Mota