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julho 20, 2010

Consciência animal: para além dos vertebrados

Manuel Magalhães-Sant’Ana (Médico Veterinário, Mestre em Bioética - mdsantana@gmail.com)


Resumo:
O delicado tema da consciência animal envolve três dimensões principais: a cognição, a auto-consciência e a senciência. Da sua compreensão, e da análise de estudos científicos recentes, resulta a dúvida sobre a possível presença de consciência nos animais invertebrados. E é esta dúvida que nos permite estabelecer um argumento capaz de fazer incluir os invertebrados na esfera da moralidade.


Introdução:

     Na pequena localidade de Castelcutó, na Sicília, um grupo de rapazes no dealbar da adolescência e inconscientes das tribulações que se avizinham, procura distracções para os seus dias. É Primavera, no ano de 1940, e a Itália de Mussolini prepara-se para participar ufana na Segunda Grande Guerra. Os amigos de Renato Amoroso, enquanto esperam no solarengo passeio à beira-mar pela passagem de Malèna, a mais bela mulher da povoação, divertem-se a queimar uma formiga. Usando uma lupa graduada, eles fazem incidir os raios de Sol sobre o diletante insecto:
     “- Piné, o que achas? A formiga sabe que está arrumada?”
     “- Eu é que sei?”
     “- Se for como tu, não sabe coisa nenhuma!”, e soltam uma sonora gargalhada, um pouco forçada.
     A formiga tenta debalde escapar ao feixe luminoso e contorce-se em movimentos espasmódicos e desesperados. A batalha dura alguns segundos até a formiga se deter, funérea e de patas para o ar. Um estranho silêncio apodera-se dos jovens, até aqui jocosos. Olham a formiga jacente como que surpreendidos com o desfecho letal da sua brincadeira; Piné, que segura a lupa na mão esquerda, entoa uma oração, repetida por todos:
     “- De culpas estou lavado, fui por Jesus resgatado.”[1]

A situação narrada, apesar de ficcionada, serve de mote e de ponto de partida para este artigo que pretende ser uma reflexão sobre os animais invertebrados e que incide em questões como a senciência, a consciência e o estatuto moral. Para avançarmos, torna-se indispensável clarificar alguns destes conceitos.



Animais invertebrados – uma definição

Calcula-se que os animais invertebrados, isto é, todos aqueles desprovidos de coluna vertebral, correspondam a mais de 99% de todas as espécies animais do planeta (Strickberger 2000). Considero ser este um número suficientemente abrangente para os incluirmos na nossa reflexão. São seres normalmente pequenos e, na sua maioria, marinhos fugindo ao convívio e compreensão da espécie humana; a maior parte dos invertebrados terrestres são artrópodes, de que fazem parte os insectos (como a formiga) e os aracnídeos (como a aranha). O estudo destes animais (como a entomologia e a malacologia) foi visto durante centenas de anos como um ramo pobre da zoologia, no qual não valia a pena despender demasiado tempo; honrosa excepção foi Jean-Baptiste Monet, Cavaleiro de Lamarck, que desenvolveu um trabalho notável na compreensão e classificação sistemática dos “animais sem vértebras” (Lamarck 1801), tanto mais que foi ignorado pelos cientistas coevos. O conhecimento que a ciência moderna trouxe sobre a anatomia, fisiologia e biologia destes animais não alterou, no entanto, a concepção psicológica que deles fazemos. Herdeiros do pensamento aristotélico, consideramos ainda hoje os invertebrados como seres inferiores, em contraponto com os superiores vertebrados. Mesmo sabendo que a evolução das espécies, alicerçada nas teorias darwinianas, não obedece a critérios perfeccionistas ou teleológicos, a verdade é que estabelecemos esta convicta divisão que se encontra expressa, por exemplo, no Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa.

Cognição, auto-consciência e senciência

     É fundamental compreender exactamente de que falamos quando abordamos o “problema duro da consciência” (Curado 2007). Não me proponho apresentar uma definição própria de consciência mas considero, no que aos animais diz respeito, ser importante distinguir três dimensões da palavra consciência, que se interligam e complementam, e que se encontram explanadas na Tabela 1.

Tabela 1: CONSCIÊNCIA ANIMAL - As relações entre Cognição, Auto -consciência e Senciência.

Capacidade Mental
Designação segundo Block 1991
Software envolvido
Procedimento Mental
Estratégia usada
Processo Básico
Função Ontogénica
Função
Filogénica
Cognição
Access Consciousness
Memória
Rules of thumb
(fazer associações e categorias conceptuais a partir de informação sensorial)
Comparação;
ligação;
encadeamento;
mapeamento espacial.
Tentativa e erro
(estímulo – resposta)
Aprendizagem
Adaptação à mudança (Evolução)
Auto -Consciência
Monitoring and self-consciousness
Mente
Metacognição
(responder a processos cognitivos internos)
Cálculo numérico;
representação abstracta;
análise lógica;
pensamento indutivo e dedutivo.
Raciocínio e pensamento integrante
Compreensão
Senciência
Phenomenal or emotional consciousness
Sistema nervoso
e
órgãos dos sentidos
Percepção subjectiva da qualidade dosinputssensoriais
Assimilação de sensações
e percepções.

Reforços sensoriais positivos negativos
Evitar lesões físicas e prevenir situações perigosas

     A cognição (ou representação cognitiva) diz respeito aos processos pelos quais o animal assimila, processa e armazena informação (Dawkins 2001). A auto-consciência pode se descrita como a capacidade em manter uma representação mental da sua própria dimensão física e dos seus próprios estados fisiológicos internos (Budiansky 1998) e envolve uma miríade de estados mentais que se traduzem em pensamento, memória e sensação (Griffin 1976). Por último, a senciência (ou consciência fenomenal) corresponde à capacidade em experimentar sensações subjectivas tais como dor ou prazer. Estes três vértices da consciência, estudados em detalhe na psicologia e neurofisiologia humanas, são de muito difícil acesso nos animais não humanos e despoletam muitas dúvidas e contradições. A consciência animal é um campo do conhecimento que não reúne consensos mas do qual se esperam enormes evoluções nos próximos anos. Para a etóloga britânica Marian Stamp Dawkins, a consciência é o maior mistério ainda por desvendar que a biologia enfrenta (Dawkins 2001).
     A cognição é um processo muito avaliado em zoologia, o que não quer dizer que seja bem compreendido. Acredita-se que esteja presente em todos os animais vertebrados, onde se podem encontrar processos cognitivos muito diferentes. A avaliação das estratégias cognitivas varia consoante a biologia de cada espécie e são essas diferenças que fazem com que seja difícil dizer se um animal é cognitivamente mais complexo do que outro: um morcego-ferradura (animal gregário, noctívago, insectívoro, voador e que se guia por ecolocação) difere diametralmente de uma foca-leopardo (animal marinho de águas frias, carnívoro e solitário), embora sejam ambos mamíferos.
     A auto-consciência é a forma de consciência animal que mais dúvidas suscita e que mais tem apaixonado neuro-psicólogos e etólogos. São famosos os estudos de linguagem gestual realizados em primatas superiores nas décadas de 70 e 80 do século passado, estudos esses que fizeram correr rios de tinta na defesa da metacognição animal, mas principalmente na sua refutação. A dúvida persiste sobre se os símios antropóides são capazes de se verem si próprios como indivíduos e de pensar em pensamentos[2], mas entretanto outros animais já entraram nesta corrida como golfinhos, elefantes e pegas.
     Em relação à consciência fenomenal ou senciência, e mesmo na ausência de unanimidade, existe uma aceitação generalizada de que pelo menos todos os vertebrados são sencientes. É plausível que a senciência não seja um fenómeno de tudo ou nada e que se apresente com diferentes graus: assim sendo, mamíferos e aves seriam mais sencientes do que répteis, anfíbios e peixes. Estudos recentes (Sneddon 2003) parecem comprovar, no entanto, que os peixes (denominados vertebrados inferiores) são capazes de experimentar dor física e psicológica de modo muito análogo aos mamíferos. A senciência é o aspecto da consciência animal que mais importância prática possui, na medida em que nos permite saber a melhor forma como cada animal deve ser tratado e assim estabelecer medidas capazes de promover o seu bem-estar.
     A generalização sobre as capacidades mentais, cognitivas e sensoriais dos animais aqui deixada não deve ser encarada como uma verdade factual mas antes um conjunto de teorias, que correm o risco de se tornarem falaciosas na medida em que, de facto, não sabemos exactamente do que estamos a falar. Darwin foi o primeiro a referir-se à consciência como um fenómeno evolutivo adaptativo e não a uma prerrogativa da espécie humana. Por alguma razão, os animais conscientes tornaram-se mais aptos do que aqueles que regiam as suas acções por simples regras de tentativa e erro (Dawkins 2001). Mas as melhores evidências científicas ainda não foram capazes de cabalmente definir quais as espécies animais capazes de acompanhar o ser humano na posse de consciência reflexiva e na capacidade em formular pensamentos abstractos. Mesmo experiências que comprovam o uso de raciocínios complexos por parte de animais, não chegam para comprovar que eles são seres conscientes (Dawkins 1998). E desta forma, a classificação estabelecida não serve para mais do que estabelecer uma fronteira entre animais (e entre os animais e nós próprios) que pode, na realidade, não existir.

Os invertebrados e a consciência

E quanto aos invertebrados, onde se situam no quadro da consciência animal? A convicção, quase universal, na sociedade ocidental é a de que os invertebrados são animais incogniscientes, inconscientes e insencientes. Esta é, talvez, a hipótese sobre consciência animal que menos discordância gera, embora esteja longe de ser uma verdade científica.
Piné e seus amigos queimam uma formiga até à morte. Nada de muito condenável parece existir neste comportamento (quantas travessuras envolvendo animais não fizemos, ou assistimos, na nossa meninice?). Para todos os efeitos, foi só uma formiga (um insecto, portanto). E quantos de nós se deteriam de esmagar uma formiga se esta tivesse o fadário de nos percorrer o pescoço? Ao acreditarmos que os invertebrados não pensam, não sentem e não sofrem, estamos a considerá-los absolutamente desprovidos de consciência, em todas as suas dimensões. E, desta forma, assumimos que a nossa conduta para com eles tem tanta importância como tem a nossa atitude para com um automóvel ou para qualquer outra entidade incapaz de pensar, sentir ou sofrer.
Podemos encontrar na literatura várias vozes capazes de pôr em causa a ausência liminar de consciência nos invertebrados e que vão desde Darwin até filósofos e cientistas contemporâneos. Em The Descent of Man, Charles Darwin ([1871] 2001) teoriza:

      Os animais inferiores, tal como o Homem, manifestamente sentem prazer e dor, alegria e tristeza. (...) Até os insectos brincam juntos, como foi descrito pelo excelente observador, P. Huber, que viu formigas perseguindo-se uma às outras e fingindo morderem-se, como se fossem cachorrinhos.

Mais recentemente, o filósofo inglês Stephen Clark (1985) deixa-nos o aviso de que “mesmo criaturas cujo comportamento parece, à primeira vista, ser uma mera resposta a estímulos sensoriais, de acordo com a sua disposição natural, podem ser mais complexos do que imaginamos.” Num artigo em que se apontam as seis principais ratoeiras em que o investigador pode incorrer na abordagem à consciência animal, Marian Dawkins (2001) refere o perigo em assumir que apenas organismos cognitivamente complexos são conscientes, posição que a autora rejeita sob o risco de se menosprezar e até mesmo ignorar reacções potencialmente conscientes em animais, como os invertebrados, que não são reconhecidos pelas suas capacidades intelectuais.
Collett & Collett (2002), após reverem uma centena de estudos, concluem que os insectos sociais (como formigas e abelhas) utilizam estratégias de navegação e orientação semelhantes às dos mamíferos e aves, com recurso a mapas espaciais e à memória. A fiabilidade, e ao mesmo tempo, flexibilidade apresentadas pela navegação visual destes insectos, não são compatíveis com o resultado esperado de acções pré-programadas ou do mero acaso.
      Se é possível que os insectos desenvolvam elaborados processos cognitivos com recurso à memorização, será que faz algum sentido pensar que eles podem sofrer? Sendo a consciência uma adaptação darwiniana, a dúvida está em saber a partir de onde na árvore da vida é que podemos falar em sofrimento propriamente dito e não apenas em estímulos sensoriais negativos. Eisemann et al. (1984), num curto artigo que já se converteu em clássico, afirmam que, se é provável que muita da manipulação a que os insectos são sujeitos a nível experimental não é dolorosa, a verdade é que outros estímulos como altas temperaturas ou choques eléctricos aparentemente o são.
      Defendi recentemente que a avaliação humana da consciência animal é forçosamente antropomórfica (Magalhães-Sant’Ana 2008a) e como tal vai perdendo exactidão à medida que vamos ‘descendo’ na escala filogenética: é-me fácil saber quando um cão tem dor ou desconforto, mas mais dificilmente o sei no caso de uma tartaruga. Este tipo de avaliação empírica corre o risco de cair num absolutismo bacoco que nos leve a afirmar verdades que não o são. Por exemplo, considerar que um cão tem maior capacidade para sentir dor que uma tartaruga ou dizer que uma formiga é um ser insenciente. Estas afirmações podem vir a provar-se tão longe da verdade como a teoria mecanicista de Descartes o é. É hoje consensual de que a visão cartesiana dos animais como autómatos biológicos está errada à luz dos conhecimentos científicos modernos e não expressa as convicções da nossa sociedade. Mas a única evolução que fizemos desde então foi no sentido de proteger o bem-estar do 1% de animais considerados superiores (os vertebrados) em detrimento dos 99% de seres inferiores (os invertebrados). Aos primeiros reconhecemos o interesse em não sofrer e em serem tratados com respeito em função disso conferimos-lhes protecção legal através de normas de bem-estar animal. Aos segundos não lhes conferimos nada[3], pois consideramos que eles não sentem dor, sofrimento ou outro tipo de sensação desagradável.
   Num interessantíssimo artigo da revista Animal Welfare, o cientista C. M. Sherwin analisa experiências científicas realizadas em modelos invertebrados e procura interpretar as suas reacções (Sherwin 2001). Foi avaliada a capacidade de memória e aprendizagem observacional, a presença de percepção espacial e de mapas cognitivos, respostas operativas, testes de preferência, dor e nociocepção, entre outros. Sherwin conclui que as respostas apresentadas por diversos invertebrados como abelhas, polvos, aranhas, bichas-cadelas e que nós consideramos automáticas, rígidas e fixas estão afinal sob algum controlo voluntário. Continua dizendo que se estas mesmas reacções fossem realizadas por vertebrados seriam normalmente tidas como indicativas de algum grau de consciência. De facto, temos facilidade em comparar o comportamento dos vertebrados com o comportamento humano e daí retirar conclusões sobre as suas capacidades mentais, mas apresentamos maior relutância em fazê-lo quando se tratam de invertebrados, onde é mais difícil encaixar a nossa visão antropomórfica. Nas palavras de Sherwin, “considerando os seguintes estudos é útil lembrar que a ausência de evidência não é evidência da ausência.” Mas a nossa conduta denuncia o contrário: basta-nos a ausência de evidência para assumirmos a evidência de ausência de consciência nos invertebrados.
   Recordo uma conferência a que assisti em que o cientista libanês Bassen Hassam da Universidade de Leuwen, Bélgica, relatava as descobertas em circuitos neuronais, realizadas pela sua equipa, recorrendo ao uso de Drosophila melanogaster, mais conhecida como “mosca da fruta” (Hassam 2006). Além das vantagens em termos financeiros e práticos pela rapidez dos resultados e facilidade de maneio, a Drosophila permite contornar um vazio legal que não considera os insectos animais de laboratório e como tal não sujeitos a regras de manuseamento ou de experimentação. Se não fosse este um insecto quase microscópico, ficaríamos certamente chocados com as experiências levadas a cabo e que incluíam, entre outros procedimentos, a destruição de parte do cérebro espetando finos alfinetes nas suas liliputianas cabeças; o insecto sobrevivia a esta ‘lobotomia’ e o procedimento nem parecia diminuir a esperança média de vida, já de si curta, de 15 dias.
   O que é para mim mais interessante é que estes cientistas, para poderem realizar este tipo de experiências, têm de se abstrair do seu próprio objecto de estudo, a mosca-da-fruta. Hassam e a sua equipa acreditam que a mosca não sofre. Não sabem se ela sente dor, mas creêm que ela não a experimenta. Só assim podem exercer o seu trabalho de forma séria, isenta e rigorosa. Curiosamente o que esta equipa procura demonstrar é que a Drosophila é um bom modelo para estudar o ser humano e o seu sistema nervoso já está a ser usado para compreender o nosso: regeneração cerebral após lesão, Doença de Alzheimer, sobrevivência neuronal, entre outros.
O apaziguador exercício de consciência que a maior parte de nós faz, incluindo filósofos e cientistas, é o de pensar que, algures na escala filogenética, a experiência emotiva da dor deixa de existir. A dor existe enquanto fenómeno fisiológico (e por isso é estudada em modelos animais) mas não é acompanhada por uma percepção subjectivada e emocional.
Investigações realizadas em cefalópodes vêm colocar seriamente a possibilidade de polvos, lulas e chocos, invertebrados com um sistema nervoso complexo e mal compreendido, serem também sencientes e, porque não, conscientes (Mather 2008). E quantas mais espécies invertebradas são escrutinadas, mais as dúvidas se adensam quanto às reais capacidades cognitivas e nocioceptivas destes animais. Este é, porém, um processo lento, quer pela dificuldade em encontrar parâmetros rigorosos de aferição da consciência, quer em quantificar variáveis em animais dos quais conhecemos mal os seus hábitos e cuja distância filogenética nos dificulta a interpretação.
Os primeiros passos já estão a ser dados no sentido de abordar o assunto da consciência animal para além dos vertebrados superiores. Bom exemplo disso é o relatório entregue pela EFSA (European Food Safety Authority) à Comissão Europeia, através do seu comité científico de saúde e bem-estar animal (AHAW), sobre o uso de animais para fins científicos e experimentais. Nele se afirma que as características sensoriais dos peixes ciclóstomos (lampreias), moluscos cefalópodes (polvos, lulas e chocos) e crustáceos decápodes (caranguejos, lagostas e camarões) lhes permitem ser inseridos na mesma categoria dos animais actualmente protegidos. E vai mais longe ao defender restrições ao uso de formas fetais de vertebrados no último mês de gestação e em formas larvares independentes de peixes, anfíbios, cefalópodes e decápodes (AHAW, 2005).

Da consciência à ética – inclusão dos invertebrados na esfera da moralidade

A única razão para afastar os invertebrados da reflexão bioética reside na crença colectiva de que eles não experimentam sofrimento. Mas, e se estivermos errados? Uma formiga que perde o seu trilho está condenada a morrer; mesmo sendo o mais perto que conhecemos de um “autómato biológico”, na medida em que reage a estímulos quimiotácticos muito precisos e a comportamentos pré-programados, só a distância que nos separa de tão ínfimo ser nos permite concluir que a formiga não sofre, pelo menos da forma como nós sofremos ou daquilo que nós entendemos como sofrimento.
A brincadeira de crianças que descrevi na introdução deste artigo ilustra de forma exemplar a visão do ser humano em relação aos invertebrados: são seres inferiores, não incluídos na reflexão ética ou filosófica e muito menos em questões de bem-estar animal. Quando Piné e amigos queimam a formiga não o fazem por estarem tomados por um acesso de fúria irreflectido; fazem-no com a mesma naturalidade que nós esmagamos a mesma formiga que teima em entrar-nos pela cozinha e tomar de assalto a despensa, e nem nos passa pela cabeça considerar se esse gesto tem alguma dimensão ética.
     Há aqui duas questões a considerar: uma é matar um invertebrado de forma injustificada e outra é a forma como o fazemos. Estas duas questões não são a meu ver eticamente neutras e têm implicações mais profundas. Para sencientistas como Peter Singer fazer mal a um animal envolve provocar-lhe sofrimento: se matar não provocar sofrimento, não é errado fazê-lo (Singer P [1975] 2000) [4]. Onde eu considero que o Sencientismo tem a sua maior falha é na, para já, evidente impossibilidade em traçar uma linha divisória e inequívoca entre uns e outros, isto é, entre os que sofrem e os que não sofrem. O principal argumento para considerar um animal senciente é a presença de um eixo neuronal central protegido por um esqueleto interno. Mas, o que é dor para uma ostra? Não sabemos e é essa ignorância que nos permite colocá-las vivas em água a ferver sem nos determos a equacionar a hipótese de estarmos a cozer um animal vivo e a provocar-lhe uma morte potencialmente dolorosa. Não estou com isto a dizer que é errado fazê-lo, na medida em que não há dados indeléveis que o asseverem. Mas também por isso considero que tentar estabelecer diferenças maniqueístas entre os animais (vertebrado = senciente; invertebrado = insenciente) é uma decisão tão arbitrária como estabelecer divisões entre seres humanos por motivos, não menos aleatórios, de raça, sexo, idade ou condição social, por exemplo.
A formiga não sabe que vai ser morta por Piné; não grita, não expressa sentimentos, mas o que vemos não deixa de nos fazer questionar sobre a sua senciência. Segundo o princípio da semelhança com a espécie humana (o princípio que usamos na avaliação do sofrimento nos vertebrados), é muito difícil não ver na sequência desenfreada de movimentos aleatórios e descontrolados uma reacção dolorosa profunda, ou pelo menos o seu equivalente em ‘formiguês’. Descartes via o cão a espernear e a gritar e considerava-os meras reacções mecânicas e pré-programadas. Porque é que quando vemos uma formiga na mesma situação pensamos o mesmo? Albert Schweitzer, filósofo alemão e Prémio Nobel da Paz em 1952, considerava que todos os seres vivos possuíam uma will-to-live, uma vontade de viver que merece ser respeitada e preservada. Na obra Civilization and Ethics e referindo-se ao ser humano que vive o princípio da reverência pela vida, Schweitzer (1923) escreveu:

      Se ele sair à rua após uma tempestade e vir uma minhoca que se perdeu, ele compreende que ela secará ao Sol se não alcançar rapidamente terra húmida onde rastejar, e então ele remove-a das pedras mortíferas e devolve-a à relva luxuriante. Se ele passar por um insecto que caiu numa piscina, dá-se ao trabalho de lhe fazer chegar uma folha ou galho no qual ele possa trepar e salvar-se.

     Mas ao contrário de Schweitzer, para muitos de nós “o único insecto bom, é o insecto morto”[5] (Rich 2000. No entanto, pensar num mundo sem insectos é imaginar um mundo pós-apocalíptico, com invasão de seres microscópicos, como fungos e bactérias, de vegetação rasteira e a extinção de todos os mamíferos (Rich 2000. Por mais que desprezemos as moscas e recorramos a todos os métodos possíveis para eliminá-las a verdade é que não concebemos (a não ser, talvez, que sejamos adolescentes sem nada para ocupar o tempo) arrancar-lhes as asas e espetar-lhe um alfinete antes de a esmagarmos com a sola do sapato. Na verdade, não sabemos se a mosca sente dor quando lhe arrancamos as asas; ela não apresenta o comportamento da formiga queimada, mas isso é secundário: o gesto em si é errado quer se trate de um vertebrado ou invertebrado porque aplicar aquilo que nós consideramos cruel a um animal que não sabemos ser capaz de sentir dor é fazer uma simplificação do raciocínio ético de modo a podermos agir indiscriminadamente ou de forma contrária às nossas convicções. E se a mosca sem asas pode não sofrer, nem física nem psicologicamente, a verdade é que já mosca não é, na sua habilidade inigualável em voar.
     Peter Carruthers (2007), respeitado filósofo da bioética animal, lança-nos a provocação de que os insectos sociais e as aranhas exibem um ‘grau de mentalidade’[6] passível de os considerarmos como objectos empatia e de preocupação moral. Carruthers serve-se do argumento da consciência (como elemento determinante de consideração moral) para nos fazer questionar até que ponto é que estamos dispostos a ir na defesa dos interesses daqueles que sofrem. Na sua opinião, o facto de um animal (ou um ser humano) poder vir a sofrer, não nos obriga, enquanto agentes morais, a actuar em seu benefício mas se alguém defende aqueles que sofrem terá forçosamente de ter em conta estes invertebrados no seu juízo ético.

Conclusão:

     Os principais autores sobre ética animal fazem uma destrinça mais ou menos categórica entre vertebrados e invertebrados, defendendo os primeiros e arrumando os segundos no limbo do desconhecido. Esta visão parece ser partilhada, de uma maneira geral, por todos nós: enquanto que os primeiros são conscientes (já não parece haver dúvidas nesse sentido), os segundos ou não são ou talvez sejam, ou mesmo que sejam estão tão afastados de nós humanos que esse acaba por ser um argumento irrelevante. O raciocínio que eu procuro defender é o de que, partindo dos chimpanzés e da sua indiscutível capacidade em experimentar sensações complexas semelhantes às humanas, podemos facilmente usar o mesmo argumento para alargar a esfera da moralidade aos cães, que connosco partilham 15 mil anos de evolução conjunta; ou aos gatos; e destes para todos os mamíferos domésticos que desempenham um papel vital para a nossa sociedade; e nesse caso a todos os mamíferos com os quais partilhamos uma herança comum; e dos mamíferos às aves, cognitivamente evoluídas; das aves aos peixes, seres sencientes; dos peixes aos cefalópodes, invertebrados com sistema nervoso muito complexo; e destes chegamos a todos os invertebrados sobre os quais existe a dúvida razoável de possuírem capacidades cognitivas superiores às que actualmente lhes reconhecemos.
   Não sendo possível, à luz dos conhecimentos científicos actuais, estabelecer fronteiras precisas para a consciência (e em particular para a senciência) proponho que esta característica não seja a determinante na consideração das questões éticas entre seres humanos e animais. Outras características, como o valor ecológico – o papel desempenhado por um determinado organismo no meio natural – ou o valor da espécie devem precedê-la (Magalhães-Sant’Ana, 2008b). Apesar de afirmar que a consciência não é o principal factor a ter em conta, considero-o muito importante: nada justifica o sofrimento perpetrado a animais de forma gratuita, injustificada e cruel. A diferença é que eu abro o benefício da dúvida a todos os animais e não só aos vertebrados.

Bibliografia

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Notas
 

[1] Excerto do filme “Malèna” realizado por Giuseppe Tornatore. Produção de Medusa Film/Miramax Films, Itália/EUA, 2000. Tradução do autor a partir da tradução original.
[2] Tradução do inglês think about thoughts.
[3] Pelas leis, quer nacionais quer da União Europeia, só os animais vertebrados vivos não humanos são sujeitos de protecção. O único invertebrado a receber protecção em termos de bem-estar é o polvo (Octopus vulgaris) na Animals (Scientific Procedures) Act 1986 do Reino Unido.
[4] Neste raciocínio está subjacente a ideia de que os animais não têm perspectivas de futuro e que, portanto, encurtar a sua vida não representa uma violação dos seus interesses. Por outro lado, para Singer e dentro da tradição utilitarista, matar um animal não é um problema ético se ele viveu uma vida boa, se for abatido sem sofrimento (e não apenas de forma indolor) e se for substituído por um novo animal senciente, que não existiria se o anterior não fosse abatido.
[5] Tradução do original inglês the only good bug is a dead bug.
[6] Tradução do original inglês degree of mindedness.

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