por George Guimarães
Faz algum tempo, comecei a perceber-me incomodado quando alguém declara orgulhar-se por ser “vegetariano”. Depois de avaliar se eu estaria com isso expressando um sintoma de intolerância, constatei que não se tratava de uma intolerância dirigida ao indivíduo, mas de um incômodo diante da incoerência implícita nesse suposto orgulho em declarar-se “vegetariano”, em especial no uso comum do termo, que atualmente abrange também aqueles que consomem ovos e laticínios.
No meu entender, ser vegano (excluir não somente os ovos e laticínios da alimentação, mas também todos os outros derivados de origem animal de todo o cotidiano) não é mais do que a obrigação moral de todos. Sendo apenas o mínimo a ser feito, o que há nisso para se orgulhar? O fato de uma pessoa não ser tão ignorante ou acomodada quanto a maioria que a rodeia não é motivo algum para orgulho. Dependendo do meio onde a pessoa está inserida, isso pode ser motivo para admirá-la por sua coragem, determinação e força de vontade, mas não algo de que ela própria possa se orgulhar. Afinal, ela está fazendo nada mais que sua obrigação, que é a de não explorar outros seres sencientes, livrando-os assim da miséria, escravidão e morte que lhes seriam impostas em troca de algum prazer ou conforto momentâneo e individual.
Mas se a pessoa eleva o seu veganismo um passo adiante, decidindo dedicar-se a levar a mensagem dos direitos animais a outras pessoas (tornando-se um ativista), a partir daí ela poderia considerar que está fazendo algo além da sua obrigação moral, apesar que uma outra ótica poderia chegar à conclusão de que o ativismo também seja nada mais do que a nossa obrigação moral.
O dilema diante da constatação da incoerência implícita no tal “orgulho vegetariano” não se aplica apenas aos veganos, mas também (e com maior gravidade) àqueles que exaltam a sua benevolência enquanto regozijam-se com produtos que derivam do mesmo montante (senão mais) de exploração animal quanto a carne. Refiro-me, naturalmente, a produtos como ovos e laticínios. Com uma pausa para reavaliar a minha tolerância (ou a possível ausência dela), compreendo que a passagem pela fase do consumo de alguns alimentos derivados de animais, ainda que não seja essencial, seja comumente necessária haja vista o grau de alienação que prevalece em nossa sociedade. Desse modo, uma fase de “descompressão” (o consumo de derivados animais) pode ser útil até que o indivíduo possa atingir a normalidade (veganismo). No entanto, não devemos deixar de considerar que a transição direta do
Posso admirar o fato de o indivíduo ter despertado e dado início à revisão e desprendimento dos vícios, matrizes e comodismos que ainda mantêm a grande massa presa à ignorância e ao descaso, inconscientes, mas não isentos, da responsabilidade que cada um tem sobre a perpetuação ou a abolição da escravidão animal. Apesar de eu poder compreender que esse processo possa demandar um tempo até que a pessoa abandone todos os derivados animais, ainda assim não posso dizer que vejo isso como algo do que se orgulhar. Há os que passem rapidamente por essa fase de transição ou os que, ainda que não o façam rapidamente, galgam de maneira constante os degraus necessários e isso é admirável.
No entanto, seja por acharem que assim está bom ou seja por acharem que não são capazes, há aqueles que chegam ao “status” de terem abandonado o consumo de carnes de animais e a isso consideram a conquista final, como se a possibilidade do veganismo fosse reservada a alguns poucos escolhidos ou extraordinariamente desenvolvidos em sua compreensão sobre a moralidade. O fato é que por trás da “satisfação” com a sua classificação alimentar está um único motivo: o comodismo. Sim, o comodismo, uma vez que do ponto de vista fisiológico é possível abstermo-nos do consumo de produtos animais em sua totalidade. Se há algum apego a eles, seja esse apego trajado com a desculpa de que a sua condição social ou a sua rotina diária não permitem fazer a transição, o fato é que o apego existe. Mesmo que não haja um apego ao alimento em si, há um apego à tal rotina diária que supostamente impede a mudança. Ora, se a pessoa não muda a sua rotina, é porque isso traria consequências que gerariam algum desconforto, certo? Logo, a pessoa opta por manter o desconforto do animal que será explorado para que ela possa manter a rotina que considera ser a mais confortável para si mesma. Isso é comodismo.
Sendo o comodismo considerado pela maioria como um comportamento negativo, pergunto-me de onde vem a imensa incoerência de orgulhar-se de uma prática pautada pelo comodismo. Talvez o critério seja o de comparação, afinal, apesar de acomodadas, as pessoas que continuam a consumir convictamente alguns produtos derivados de animais são menos acomodadas do que a maioria da população que continua a consumir convictamente todos os produtos de origem animal. Ou, talvez, essa aceitação seja porque se instituiu que abandonar o consumo de carnes já seja algo suficientemente digno de admiração e orgulho, e por isso não seria preciso ir além. Conforme já expus, até mesmo o referido “além” (o abandono de todos os alimentos de origem animal da dieta) está bastante aquém do mínimo que todos deveriam praticar (o veganismo, aplicado a todo o cotidiano) e demasiadamente aquém do ideal a ser objetivado (o veganismo somado ao ativismo pelos direitos animais).
Portanto, se pretendemos auxiliar as pessoas em seu processo de desapego daquilo que as mantêm ligadas ao consumo dos produtos derivados de animais, devemos, antes de qualquer coisa, apontar a elas onde está a sua incoerência, pois isso as motivará a continuar seguindo adiante. Desapropriá-las dos louros indevidos não é dirigir a elas uma atitude de intolerância, mas sim estimulá-las para que sigam caminhando com convicção e coerência até que possam apropriar-se do orgulho ou, mais apropriadamente, da satisfação que almejam com a sua classificação dietética.
Nesse sentido, e vindo de encontro a solucionar o meu incômodo particular já relatado, novos termos estão sendo propostos para classificar aqueles que optam por deixar o consumo de alimentos de origem animal. Os termos que serão apresentados a seguir foram discutidos pelos membros da recém-fundada Sociedade Vegana, uma organização que teve parte da motivação para a sua criação na aparente confusão e mal-uso que vem sendo feito dos conceitos do vegetarianismo e do veganismo. Assim como em 1944 a Sociedade Vegana do Reino Unido surgiu para destacar os vegetarianos (para usar a definição da época) que haviam abandonado o consumo de ovos e laticínios, criando o termo “vegan”, de modo semelhante a Sociedade Vegana, fundada no Brasil em 2010, propõe reclassificar o conceito até então conhecido como vegetarianismo à sua verdadeira condição, que é a de protovegetarianismo.
O prefixo proto (do grego) designa aquilo que dá indício de ser, ou que inclina-se a ser, mas que ainda não é. São exemplos desse uso os termos protótipo e protozoário. São exemplos de um protovegetariano, os ovolactovegetarianos, lactovegetarianos, ovovegetarianos, apivegetarianos ou qualquer combinação entre os prefixos que designam o alimento de origem animal que continua agregado ao que seria a sua dieta vegetariana (mas que não é, justamente por trazer esses alimentos animais agregados). Protovegetarianos são, portanto, aqueles que desejam ser vegetarianos (alimentar-se exclusivamente de alimentos vegetais), mas ainda não chegaram lá, pois ainda se mantêm presos ao consumo de alguns produtos de origem animal.
Já o termo vegetariano aplica-se àquele indivíduo que baseia a sua alimentação exclusivamente em alimentos de origem vegetal e mineral. O termo vegano aplica-se ao indivíduo que, além de adotar uma dieta vegetariana (eliminando todos os produtos de origem animal da sua alimentação), também deixa de consumir os produtos da exploração animal em outros aspectos do seu modo de vida, como por exemplo nos cuidados com a saúde e nos esportes e entretenimento dos quais escolhe participar.
Naturalmente, os termos não se aplicam somente ao indivíduo, mas também ao alimento, ao produto, ao estabelecimento, etc. Para citar alguns exemplos seguindo a nova terminologia, para designar-se vegetariano, um restaurante deve servir apenas alimentos de origem vegetal, mas não precisa ter um cuidado especial com a origem dos produtos de limpeza que utiliza. Já um restaurante vegano está coerente com o termo quando vai além dos alimentos que serve para cuidar também de outros aspectos relacionados à sua operação e que possam envolver a utilização de produtos derivados da exploração animal. Do mesmo modo, uma entidade que se intitula vegetariana não pode ser permissiva com o consumo de alimentos de origem animal. A designação correta para uma entidade que eventualmente seja condescendente com o consumo de produtos de origem animal é protovegetariana. Para citar outro exemplo, um livro de receitas vegetarianas não faz jus ao nome se nele houver receitas com ovos e laticínios. Se for um livro com receitas que mantêm esses produtos animais, a classificação correta é de um livro de receitas protovegetarianas (para usar um termo genérico) ou um livro de receitas ovolactoapivegetarianas ou composição semelhante para o caso de desejar ser mais específico sobre os ingredientes que utiliza ou não utiliza. No entanto, passa a ser incorreto usar o título “receitas vegetarianas” para designar uma publicação que inclua ingredientes animais em suas receitas.
Nesse momento de transição, um pequeno glossário relacionando os termos novos aos termos anteriores pode ser útil:
Protovegetariano – indivíduo que mantém algum derivado animal agregado à sua dieta. Podem ser uma combinação dos prefixos ovo-, lacto- e api- (exemplo: ovolactovegetariano). Anteriormente conhecido como vegetariano.
Vegetariano – indivíduo que consome somente alimentos de origem vegetal e mineral. Anteriormente conhecido como vegetariano estrito, o que hoje vemos ser uma redundância nos termos.
Vegano – indivíduo que adota uma dieta vegetariana (isenta de qualquer alimento de origem animal) e também abole os produtos de origem animal de outros aspectos do seu modo de vida.
É natural que haja alguma confusão no uso desses termos durante os primeiros anos de transição. Será necessário trabalhar o seu uso não apenas na comunicação entre vegetarianos e protovegetarianos, mas também junto à imprensa e à população. Ainda que essa mudança possa trazer alguma confusão no início, estaremos pavimentando o caminho para uma comunicação mais clara e isenta das falhas que hoje mantêm o comodismo oculto sob os olhos do próprio indivíduo que se mantém apegado a ele, afagando com isso o providencial incômodo que, se não fosse escondido, poderia motivá-lo a seguir em sua caminhada rumo à abolição de todas as formas de exploração animal do seu modo de vida.
George Guimarães, nutricionista especializado em dietas vegetarianas, membro fundador da Sociedade Vegana
Fonte: Anda
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