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setembro 05, 2007

O Bem-estarismo e a Bíblia

Em nosso texto “A Bíblia preconiza o vegetarianismo”, tornamos claro que o conceito especista religiosamente justificado, com base no texto de Gênesis 1:26 e 28, nada mais é do que um erro de tradução. No entanto, está claro que em muitos outros lugares a Bíblia parece endossar o status superior ou o domínio do homem sobre as demais criaturas. De fato, a mesma Bíblia foi, no passado, utilizada para justificar muitas outras atrocidades como a pilhagem, os crimes de guerra, a escravidão, o sexismo, a pedofilia e tantos outros. Não é de se estranhar, portanto, que a exploração animal seja também permitida em muitas passagens.

A Bíblia condena com a pena de morte o adultério (Deut. 22:22), o sexo antes do casamento (Deut. 22:21), as práticas homossexuais (Lev. 20:13), o espiritismo (Lev. 20:27), a apostasia (Deut. 17:2-5), a rebeldia juvenil (Deut. 21:20-21) e tantas outras coisas hoje consideradas banais. Há ainda outras passagens que, do ponto de vista ético contemporâneo, são questionáveis.

Em Deuteronômio 20, há leis relativas à guerra: quando o exército saía para lutar contra uma cidade inimiga, este devia primeiramente oferecer-lhes a paz. Se o povo inimigo aceitasse a proposta de paz e abrisse suas portas, os habitantes da cidade deveriam ser escravizados. Caso eles não aceitassem a proposta de paz, a cidade deveria ser sitiada, os homens deveriam ser mortos, seus bens pilhados e as mulheres, crianças e gado tomados.

Isso no caso de cidades distantes, pois no caso de cidades próximas, pertencentes aos heteus, amorreus, cananeus, ferezeus, heveus e jebuseus, toda a população deveria ser massacrada. Diversas outras passagens bíblicas mostram que, ao se conquistar uma cidade, podia-se fazer praticamente de tudo com a população conquistada (Num. 31:17; Deut. 2:34, 3:6).

Mas essas práticas não eram de todo más, pois havia leis que asseguravam o “bem-estar” destes pobres seres conquistados. Por exemplo, em Deuteronômio 21 (11-14), há uma lei que pretende garantir “tratamento ético” às mulheres capturadas em guerras. Se, ao saquear uma cidade, um homem ficasse atraído por uma mulher em particular, poderia levá-la para casa. Ele deveria permitir-lhe que durante um mês chorasse a morte de sua família (que poderia ter sido morta por ele próprio). Depois disto ele poderia tomá-la sexualmente. Se ela não lhe agradasse, ele deveria deixá-la ir, mas não poderia vendê-la.

Aqui reside a ironia deste tipo de “bem-estar”, porque a mulher podia ter sua família morta, podia ser levada cativa, podia ser violentada, mas seria antiético vendê-la. O mesmo encontramos no bem-estarismo animal contemporâneo, onde fazer certas coisas com um animal (enfiar-lhe esporas, dar choques, etc.) é considerado errado, mas fazer coisas piores (matá-lo) é considerado certo.

Nos relatos bíblicos, as pessoas tornavam-se escravas por dívidas ou por pertencerem a povos conquistados. Diferente da escravidão perpetuada pelos europeus, os escravos na Bíblia não pertenciam a povos inferiores nem eram subumanos, podendo senhores e escravos pertencer à mesma raça. Embora escravos fossem bens, propriedade, havia certa “preocupação” com seu “bem-estar”.

Assim, quando um escravo fugia e buscava refúgio na casa de outra pessoa, essa pessoa devia recebê-lo, e não devolvê-lo para seu dono (Deut. 23:15); uma escrava desposada recebia status semelhante à esposa (Êxodo 21:9-10); se, durante o castigo, um escravo perdesse um olho ou um dente, ele deveria ser libertado (Êxodo 21:26-27); quem batesse em seu escravo até a morte deveria ser punido (Êxodo 21:20), mas, se o escravo sobrevivesse até o dia seguinte, a pessoa estava livre da punição, afinal, o escravo era sua propriedade (Êxodo 21:21).

À mulher também era conferido o status de propriedade. Mulheres podiam se consagrar ao Templo, mas seu valor era inferior ao de um homem (Lev. 27); quando uma mulher fazia votos religiosos, estes só eram considerados se aprovados por seu pai ou esposo (Num. 30:3-8); o homem podia repudiar sua esposa se esta não pudesse lhe dar um filho, e somente ao homem era permitido desposar uma segunda mulher (ou quantas pudesse sustentar). Se uma mulher fosse ferida em uma briga, a indenização era estipulada por seu marido (Êxodo 21:22).

Desta forma, vemos que, se em tempos remotos, a Bíblia permitiu o subjugo do animal, vemos que também o fez em relação a outros povos e às mulheres. Com isto não pretendemos desmerecer as Escrituras Sagradas, mas sim, mostrar que a percepção de ética da época não pode se pretender defensável em pleno século XXI. Dito isso, entendamos que o conceito de “bem-estar” nada tem a ver com atribuir ao ‘objeto’ qualquer direito. Os exemplos acima citados mostram que, desde tempos remotos, seres reconhecidamente sencientes eram ao mesmo tempo considerados objetos, de modo que, apesar de merecerem alguma consideração quanto ao seu bem-estar, seus direitos eram limitados. O objetivo principal deste bem-estar, na maioria dos casos, era melhoria de sua produtividade.

Com isto entendemos as antigas origens do moderno conceito de “bem-estar animal”. A idéia de que o homem tem o direito de fazer uso de animais está enraizada em nossa sociedade, especialmente através da concepção religiosa predominante. Quando analisamos nossos livros históricos e religiosos, encontramos mais do que a razão pela qual tomamos o direito de explorarmos-nos uns aos outros e aos animais. Camuflado sob o véu da ética, encontramos nesses livros a forma correta de tratarmos nossos escravos, os povos por nós conquistados, as mulheres e os animais.

E como podemos entender esse “bem-estar” animal? É a concepção de que os animais podem (e em alguns casos até devem) ser usados, mas sempre atentando para que os mesmos sofram minimamente. Sofrer minimamente, ou sofrer o estritamente necessário, é um conceito empírico e confuso, primeiramente porque não há uma escala que permita quantificar o sofrimento, e em segundo lugar porque a expressão “sofrer o estritamente necessário” não traz luz à questão “necessário para quê?”. Para que satisfaçamos nosso paladar, tenhamos roupas quentes, nos divirtamos, possamos experimentar novas substâncias? O que deve ser considerado necessário?

É crescente o número de seres humanos que opta por jamais tomar parte em qualquer aspecto do sofrimento animal. A simples viabilidade deste estilo de vida, o veganismo, é prova incontestável de que todo sofrimento animal causado pelo homem é desnecessário.

Como vimos, a idéia de “bem-estar animal” não é de forma alguma moderna. Essa idéia apenas ganhou novo impulso na Era Contemporânea, pós-Revolução Industrial. De fato, o confinamento de animais em sistemas de criação intensivos, a mecanização dos processos vitais e a intelectualização do ser humano conferiram nova roupagem ao bem-estar animal. Agora a idéia deixa de ser mero bom-senso e passa a adquirir contornos de movimento, ativismo, a promulgação de normas e palco para debates apaixonados.

No entanto, essa idéia é bastante antiga e o texto bíblico é bom exemplo disto.

Quando foi permitido ao primeiro homem comer carne, isso foi feito devido às novas condições em que o planeta se encontrava, após o dilúvio universal (Gen. 9:3). Nessa permissão, porém, uma ressalva foi feita: Noé e sua família poderiam comer carne, mas não de forma incondicional. Houve uma imediata proibição contra alimentar-se do sangue dos animais(Gen. 9:4).

A Bíblia quer nos fazer acreditar que no sangue do animal reside sua essência vital (Gen. 9:4; Lev. 17:10-14, 19:26; e Deut.12:16, 12:23, 15:23). Desta forma, consumir o sangue do animal significa consumir sua vida. Os antigos israelitas acreditavam que, se consumissem o sangue de um animal, seriam culpados por sua morte (Gen. 9:5). Por outro lado, se matassem um animal mas devolvessem todo o seu sangue à terra, estavam livres de qualquer culpa.

Esta forma de comer carne ‘sem tirar a vida’, de se livrar da culpa pela morte, é mais ou menos o que observamos no movimento de bem-estar animal contemporâneo, porque o foco das atenções é desviado do problema real e passa a se concentrar em livrar a consciência do agressor. Matar em si deixa de ser errado, o errado é fazer isso sem o devido respeito. É como o índio ou o africano animista, que abate a caça, ajoelha-se ao lado dela e chora um choro ritual, onde explica ao irmão-animal que sua morte foi necessária para saciar a fome de sua família. Esta, para quem olha de fora, parece uma forma respeitosa de lidar com a situação, mas para o animal que morreu, a situação é exatamente a mesma.

É possível que a maioria dos judeus atualmente não acreditem que no sangue do animal resida sua vida, mas as leis dietéticas (kashrut) que preconizam a remoção do sangue continuam sendo praticadas. O Rabino Samuel Dresner comenta que “a remoção do sangue, como ensina a kashrut, é um dos mais poderosos meios de fazer-nos constantemente tomar consciência desta concessão e de todo o comprometimento que envolve, na realidade, o ato de comer carne. Novamente nos é ensinado a reverenciar a vida”.

Essa é uma forma bastante peculiar de se demonstrar reverência à vida, porque, ainda que se aceite que verter o sangue do animal na terra impede que se consuma sua vida, não se pode ignorar o simples fato de que o animal foi morto contra sua vontade. Para o animal pouco importa o que se faz com seu sangue depois que ele é abatido, porque seu interesse é que o sangue esteja circulando em seus vasos.

Após a proibição do consumo da carne com o sangue, outras condições surgiram para amenizar o problema do abate de animais. Os animais passaram a ser classificados em kasher (puros) e taref (impuros), de acordo com Levítico 11, e somente foi permitido o consumo da carne de animais ritualmente abatidos (Lev. 17:4). A explicação para a segunda imposição encontra fundamento no bem-estar animal.

O abate de animais conforme as leis da kashrut, conhecido como shchitah, hoje é denominado “abate cruento”, em oposição ao que se considera “abate humanitário”. No entanto, cabe dizer que a shchitah surgiu como proposta de abate humanitário, visto que com o corte da jugular do animal entendia-se que estavam sendo cortadas as comunicações entre o cérebro e o restante do corpo do animal. Entendia-se que, embora o animal continuasse a se mexer, estava anestesiado, que o método era indolor. Essa forma de abate contrastava com a forma praticada por outros povos, onde muitas vezes partes dos animais eram removidas para consumo, estando o animal ainda vivo.

Mas é claro que a shchitah não é de forma alguma humanitária, como também não o é o mal denominado “abate humanitário”. A única matança que pode ser considerada humanitária é a eutanásia de um animal cuja doença torne sua vida insuportável. A “eutanásia” de animais saudáveis apenas para controle de população ou em determinado experimento não é humanitária, porque tampouco pode ser considerada uma “boa morte”. Matar um animal para consumi-lo, seja por qual método for, jamais será humanitário, porque o “matar” é intrinsecamente cruel, não importa de que forma se faça.

Mas, como no bem-estarismo contemporâneo, a Bíblia nos faz crer que o errado não é matar o animal, mas sim depredar e acabar com o recurso que posteriormente poderá servir novamente ao homem. Assim, uma pessoa que encontre um ninho com ovos ou passarinhos e a mãe chocando, poderá pegar para si os ovos e os passarinhos, mas deverá deixar a mãe ir (Deut. 22: 6-7), provavelmente uma forma de garantir que haja mais ovos e filhotes em breve. Uma outra lei ordena que a cada 7 anos os campos deixem de ser cultivados para que a terra descanse. Neste período o que nascer nesta terra poderá servir aos pobres e aos animais do campo (Êxodo 23:10-11); a preocupação com os animais do campo pode ser simplesmente uma preocupação com a caça no futuro.

Da mesma forma, outros exemplos de leis de bem-estar animal são encontrados na Bíblia.

Em Êxodos 23:4-5, encontramos os seguintes versículos: “Se encontrares desgarrado o boi do teu inimigo ou o seu jumento, lho reconduzirás. Se vires prostrado debaixo da sua carga o jumento daquele que te aborrece, não o abandonarás, mas ajudarás a erguê-lo.” Poder-se-ia dizer que reconduzir um boi ou um jumento, ou ajudar um jumento sobrecarregado a se levantar envolve interesses econômicos, mas isto apenas é válido quando se tratar do animal explorado pela pessoa ou um dos seus (Deut. 22:1-4).

Por que alguém se empenharia em preservar os interesses econômicos de seus inimigos ou daqueles que o aborrecem? Esses versículos parecem encontrar base no que chamamos “bem-estar animal”, e como praticamente tudo o que encontramos nesse movimento, é incoerente porque contrasta com outras passagens onde é ordenado que o gado e os animais de cargas dos inimigos devem ser mortos junto com eles.

Há leis específicas para o “bem-estar” de animais submetidos a trabalhos forçados, como a que ordena que os animais também tenham o direito ao descanso do sábado (Êxodo 23:12; Deut. 5:14), ou a que impede que se coloque para puxar um mesmo arado animais de espécies diferentes (Deut. 22:10), o que certamente exigiria maior esforço da espécie mais fraca.

O objetivo do presente texto, como dito anteriormente, não é ofender as convicções religiosas de quem quer que seja, mas tão somente demonstrar que a Bíblia pode ser utilizada para provar ou refutar o que se queira. Se intencionar-se manter os padrões morais e comportamentos estabelecidos pela Bíblia para com os animais, pode-se entender que o mesmo se aplique às mulheres, às crianças, aos homossexuais, aos adúlteros, aos idólatras, etc. O texto também demonstra que o que muitos acreditam ser uma idéia moderna, o “bem-estar animal”, nada mais é do que uma repetição de idéias antigas. Nas sábias palavras do Pregador: “O que se foi é o que será; e o que se fez, isso se tornará a fazer; não há nada de novo debaixo do sol.Há algo que se possa dizer: Vê, isto é novo? Não! Tudo já existia séculos antes.” (Eclesiastes 1:9-10).

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